Paulo Freire. Revista de Pedagogía Crítica
Año
15, N° 18 Julio – Diciembre 2017
ISSN 0717 – 9065 ISSN ON LINE 0719 – 8019
pp.
41 - 59
A APRENDIZAGEM
COOPERATIVA COMO PRÁTICA PEDAGÓGICA
PROMOTORA DA EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA
COOPERATIVE LEARNING AS A
PROMOTING PEDAGOGICAL PRACTICE OF LIBERTARIAN EDUCATION
Pedro Neves da Rocha*
Alessandra Aparecida Viveiro**
Este ensayo consiste en una
discusión acerca de las articulaciones entre la teoría de Paulo Freire y el
conjunto teórico-metodológico del Aprendizaje Cooperativo (AC). Justificamos la
necesidad de esta articulación basada en una concepción de Didáctica, en que
pretendemos definir prácticas pedagógicas que estén en resonancia con los
posicionamientos por los docentes. Partimos de los principios freireanos:
dialogicidad, problematización y autonomía; y de los cinco elementos del AC:
interdependencia positiva, interacción estimuladora, responsabilidades
individuales, habilidades sociales y evaluación grupal. A partir del cruce de
estos 8 ejes, podemos considerar que las metodologías del AC constituyen un
ambiente propicio a una práctica pedagógica orientada por el posicionamiento
político freireano, esencialmente democrático y liberador. Consideramos que en
un entorno de aprendizaje cooperativo, los educandos poseen el pleno espacio
para el ejercicio del diálogo. Sólo en un espacio dialógico hay posibilidad de
trabajar plenamente la problematización, para la definición de Temas
Generadores y procesos de trabajo. Todavía, en el contexto del grupo
cooperativo, los educandos se encuentran enfocados en la resolución de un
problema, alineados en el mismo objetivo, con sus debidas responsabilidades, y
así pueden ejercitar el debate y la toma de decisiones colectivas. En ese espacio, viven en la práctica una
situación democrática, ejerciendo su autonomía en una perspectiva de colectividad
– en oposición a un posible individualismo. Por último, consideramos que no hay ninguna posibilidad de traducirse el pensamiento teórico freireano en prácticas pedagógicas
tradicionales, anti-democráticas, en una perspectiva bancaria. Las metodologías
de enseñanza deben ser reflejo del ideal pretendido. Juzgamos, así, que el
Aprendizaje Cooperativo presenta gran potencial como práctica pedagógica
promotora de la educación liberadora.
Palabras Claves: Aprendizaje Cooperativo,
Educación Liberadora, Autonomía, Problematización; Dialogicidad
*
Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, Brasil
- pedro.rocha66@etec.sp.gov.br
** Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, Brasil
– alessandraviveiro@gmail.com Fecha de Recepción:
24 noviembre 2016
Fecha de Aceptación: 14 noviembre 2017
This essay
consists of a discussion about the articulations between the theory of Paulo
Freire and the theoretical-methodological set of Cooperative Learning (CL). We
justify the need for this articulation based on a conception of Didactics, in
which we intend to define pedagogical practices that are in resonance with the
positions of the teachers. We start from Freirean principles: dialogicity,
problematization and autonomy; and from the five elements of CL: positive
interdependence, stimulating interaction, individual responsibilities, social
skills and group evaluation. From the crossing of these 8 axes, we can consider
that the CA methodologies constitute an environment favorable to a pedagogical
practice guided by the Freirean political positioning, essentially democratic
and liberating. We believe that in a cooperative learning environment, learners
have full space for the exercise of dialogue. Only in a dialogical space there
is a possibility to fully work on the problematization, for the definition of
Generating Themes and work processes. Still, in the context of the cooperative
group, learners are focused on solving a problem, aligned on the same
objective, with their due responsibilities, and thus can exercise the debate
and collective decision making. In that space, they live, in practice, a
democratic situation, exercising their autonomy in a collective perspective -
in opposition to a possible individualism. Finally, we consider that there is
no possibility of translating Freirean theoretical thought into traditional,
anti-democratic pedagogical practices, in a banking perspective. Teaching
methodologies should reflect the intended ideal. We believe, then, that
Cooperative Learning has a great potential as a pedagogical practice that
promotes a libertarian education.
Keywords: Coperative Learning, Libertarian Education,
Autonomy, Problematization, Dialogicity
Este ensaio consiste em uma
discussão acerca de articulações entre a teoria de Paulo Freire e o conjunto
teórico-metodológico da Aprendizagem Cooperativa (AC). Justificamos a
necessidade desta articulação com base numa concepção de Didática, em que
visamos definir práticas pedagógicas que estejam em ressonância com os
posicionamentos teóricos tomados pelos docentes. Partimos dos princípios
freireanos: dialogicidade, problematização e autonomia; e dos cinco elementos
da Aprendizagem Cooperativa: interdependência positiva, interação estimuladora,
responsabilidades individuais, habilidades sociais, reflexão em grupo. A partir
do cruzamento destes 8 eixos, podemos considerar que as metodologias da AC
constituem um ambiente propício a uma prática pedagógica norteada pelo
posicionamento político freireano, essencialmente democrático e libertador.
Consideramos que num ambiente de aprendizagem cooperativo, os educandos possuem o pleno espaço para o exercer a dialogicidade. Apenas num espaço dialógico há possibilidade de se trabalhar
plenamente a problematização, para definição de temas geradores e processos de
trabalho. Ainda no contexto de grupo cooperativo, os educandos encontram-se
focados na resolução de um problema, alinhados no mesmo objetivo, com suas devidas
responsabilidades, e assim podem exercitar o debate e a tomada de decisões
coletivas. Nesse espaço, vivenciam na prática uma situação democrática,
exercendo sua autonomia numa perspectiva de coletividade – em oposição a um
possível individualismo. Por fim, consideramos que não há possibilidade de se
traduzir o pensamento teórico freireano em práticas pedagógicas tradicionais,
anti-democráticas, numa perspectiva bancária. As metodologias de ensino devem
ser reflexo do ideal pretendido. Julgamos, assim, que a Aprendizagem
Cooperativa apresenta grande potencial como prática pedagógica promotora da
educação libertadora.
Palavras-chave: Aprendizagem Cooperativa,
Educação Libertadora, Autonomia, Problematização, Dialogicidade
Neste ensaio teórico, visamos discutir a relação entre
a Aprendizagem Cooperativa (AC) e alguns eixos do pensamento desenvolvido por
Paulo Freire. A importância relativa a esta questão insere-se no contexto da
Didática, levantada por muitos autores como parte determinante do trabalho
docente. Luckesi (1987, p. 34), por exemplo, afirma que a "Didática, a exercer o seu papel específico,
deverá apresentar-se como elo tradutor de posicionamentos teóricos em práticas
educacionais".
Em contrapartida, vemos no cotidiano que, na maioria das escolas de Educação Básica e no Ensino Superior, a metodologia tradicional é amplamente utilizada. Mesmo quando nestas instituições são levantados discursos sobre teorias diferenciadas, desde o Construtivismo até a Pedagogia Histórico-Crítica, Libertária ou outras linhas alternativas, o método tradicional – ligado à Pedagogia de mesmo rótulo – continua sendo predominante. A abordagem tradicional, segundo Maria da Graça Mizukami (1986), centra-se na atividade do professor, e considera o aluno como um ser humano inacabado, que deve receber passivamente os ensinamentos do professor. Assim, uma das principais contribuições deste projeto é a busca pelo fortalecimento de elos entre teoria e prática no contexto educacional, para revertermos o processo de distanciamento entre essa e aquela, em prol do desenvolvimento de práticas pedagógicas diferenciadas.
Ao analisar estes pressupostos, e resgatando a problemática principal destacada pela Didática de Luckesi (1987), percebemos que as estratégias de ensino e aprendizagem devem entrar em sintonia com os próprios preceitos almejados por tais correntes. Assim, fica evidente que as metodologias tradicionais, na concepção de Mizukami (1986), não são coerentes com a prática libertadora de educação. É fato que este processo unilateral de transmissão de conhecimento não condiz com os objetivos de uma educação crítica.
Como alternativa, partimos da hipótese de que as estratégias relacionadas à Aprendizagem Cooperativa (AC) podem ser potencialmente interessantes para favorecer o trabalho crítico.
Segundo Ribeiro (2015), a Aprendizagem Cooperativa pode incentivar bastante os trabalhos pedagógicos relacionados à Educação Crítica por diversas razões. Primeiramente, partimos do pressuposto que a perspectiva crítica visa a formação de cidadão atuantes na sociedade. Não só atuantes, mas que atuem de forma democrática, dialógica e cooperativa.
Embora o sistema escolar pretenda favorecer a cidadania, muitas práticas educativas, intencionalmente ou não, impedem os alunos de exercê-la. Professores e educadores ambientais não renunciaram a socializar os alunos, mas estão renunciando a uma socialização democrática, aquela que privilegia a igualdade e a participação. Muitas práticas educativas ainda são, majoritariamente, individualizantes. (ibid., p. 184)
Portanto, uma das contribuições do conjunto teórico-metodológico da Aprendizagem Cooperativa seria fornecer a experiência prática de uma atividade coletiva, dialógica e autônoma. Nela, os alunos possam posicionar-se ativamente, participarem de debates, construções de ideias, embates, acordos, consensos e tomadas de decisão ou de posicionamento quanto aos diversos problemas abordados nos processos educativos.
Assim, o objetivo deste ensaio teórico é discutir articulações entre três eixos do pensamento freireano – dialogicidade, problematização e autonomia – e entre os cinco elementos da AC – interdependência positiva, interação estimuladora, responsabilidades individuais, habilidades sociais, reflexão em grupo.
Paulo Freire é reconhecidamente um dos principais educadores brasileiros, tendo sido declarado Patrono da Educação Brasileira (BRASIL, 2012). Freire viveu do ano de 1921 até 1997. Em sua história, contam experiências como diretor e superintendente do setor de Educação e Cultura do Serviço Social da Indústria, professor da Universidade do Recife, Universidade de Harvard, Universidade Estadual de Campinas e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, além de ter recebido título de doutor honoris causa por 27 universidades. (Instituto Paulo Freire, 2016). Sua produção acadêmica e literária é vasta, contando com dezenas de títulos conhecidos e reconhecidos internacionalmente. Considera-se que este seja o principal autor da pedagogia libertária ou crítica.
Além da vida acadêmica, possuiu diversos cargos e projetos importantes em políticas públicas de educação, sendo a “Experiência de Angicos”, sua primeira e talvez mais famosa prática de alfabetização de adultos (Smolka; Almeida; Jeffrey, 2014). Colocada em prática em 1963, esta experiência tinha como objetivo alfabetizar trabalhadores rurais em um curso de carga horária de 40 horas, mas não somente isso:
Nossos objetivos, com a Campanha de Alfabetização de Adultos não se restringem a simples alfabetização. O programa prevê:
1. Dar ao adulto o domínio das habilidades fundamentais em linguagem, leitura e aritmética;
2. Promover o renascimento ou a criação de ideais e padrões elevados de vida;
3. Formar no homem a convicção da sua responsabilidade (e da responsabilidade do Estado) em dar educação aos seus filhos;
4. Habilitá-lo ao exercício da cidadania, como eleitor, como membro de uma nação livre e como participante ativo do regime democrático;
5. Promover a elevação do seu nível de vida em casa, do ponto de vista da higiene, do conforto e da alimentação;
6. Habilitá-lo à administração equilibrada dos seus recursos financeiros e da direção de sua própria vida;
7. Despertar nele a noção de que ele, sua mulher e seus filhos têm direito a uma vida melhor. (Secern, Caixa Box 19 do Aern apud Dullo, 2014, p. 33)
As ações práticas foram sempre destaque da atividade
de Freire. Mesmo de 1989 a 1991, o educador ocupou o cargo de secretário
municipal de educação da capital São Paulo. De acordo com Franco (2014), sua
gestão promoveu a construção de uma educação democrática, a partir de quatro
eixos: democratização na gestão; acesso e permanência; qualidade da educação;
Educação de Jovens e Adultos. “Por seus
trabalhos na área educacional, recebeu, entre outros, os seguintes prêmios:
Prêmio Rei Balduíno para o Desenvolvimento (Bélgica, 1980); Prêmio UNESCO da
Educação para a Paz (1986) e Prêmio Andres Belloda, da Organização dos Estados
Americanos, como Educador do Continente (1992)” (Instituto Paulo Freire,
2016).
Com uma grande produção acadêmica aliada a uma prática
intensa, Freire atingiu o devido patamar de reconhecimento que ocupa. E
justamente essa articulação e reflexão entre teoria e prática que torna o autor
tão importante. Como o próprio Freire (2014, p. 24) diz: “A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação
Teoría/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blá-blá-blá e a prática,
ativismo.”.
Desta forma não pretendemos nem poderíamos, neste trabalho, esgotar toda a sua produção conceitual. Assim, iremos nos ater a três eixos do pensamento freireano: Dialogicidade, Problematização e Autonomia.
De acordo com Paulo Freire, a pedagogia libertária ou
pedagogia do oprimido deve levar em conta alguns pressupostos básicos: o
processo de educação e de emancipação deve ser feito coletivamente. Segundo o
autor, "ninguém liberta ninguém,
ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão"
(Freire, 2011, p. 71).
Esta forma de enxergar a educação parte do princípio de que o conhecimento, a ética, a consciência e até o processo de emancipação não são transmitidos de um ser (detentor de tais fatores) para outro (não detentor), ou seja, tradicionalmente do professor para o aluno, na educação formal. Em suas obras, Freire defende sempre que a apropriação dos saberes é um processo coletivo, um processo de cooperação, de “co-laboração” (Freire, 2011, p. 223). A partir dessa apropriação, dialógica, e da reflexão crítica sobre o processo, os indivíduos adquirem as ferramentas para se tornarem cada vez mais emancipados, de forma gradual.
Desta maneira, uma importante categoria da pedagogia crítica é a dialogicidade. Segundo Freire (2011, p.114), "não há diálogo verdadeiro se não há nos seus sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico." O autor considera que o processo educativo não é unidirecional, e sim uma troca dialética, em que ambas as partes significam e ressignificam suas ideias, resultando num desenvolvimento mútuo do conhecimento, superando o pensamento ingênuo. Para Freire, o diálogo verdadeiro é um ato de amor, valentia, de humildade e de fé nos homens. Além disso:
Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em que confiança de um polo no outro é consequência óbvia. Seria uma contradição se, amoroso, humilde e cheio de fé, o diálogo não provocasse este clima de confiança entre seus sujeitos. Por isso inexiste esta confiança na antidialogicidade da concepção "bancária" da educação. (ibid., p.113)
Na atividade docente numa perspectiva crítica, é imprescindível estimular e promover o diálogo. Entretanto, o primeiro passo do docente que visa promover o diálogo é estar aberto ao mesmo. Na perspectiva freireana, o ponto de partida para isso é compreender que “ensinar não é transferir conhecimento” (Freire, 2014, p.47). Para o autor, o professor deve estar sempre aberto às perguntas e curiosidades dos alunos, respeitar seus saberes, suas indagações e inibições.
Neste processo de promover uma educação dialógica, uma habilidade necessária é a do “saber escutar” (ibid., p.110). Num contexto educacional em que se visa o diálogo, o professor necessita buscar meios de falar com os alunos e não para os alunos. Segundo Freire, isto não pode ser feito de maneira impositiva, de cima pra baixo, como se nós professores fôssemos donos da verdade. Pelo contrário, devemos dialogar com eles:
Ensinar exige disponibilidade para o diálogo [...]. É no respeito às diferenças entre mim e eles ou elas, na coerência entre o que faço e o que digo, que me encontro com eles ou com elas [...]. Como professor, não devo poupar oportunidade para testemunhar aos alunos a segurança com que me comporto ao discutir um tema, ao analisar um fato, ao expor minha posição em face de uma decisão governamental. (Freire, 2011, p.132)
Isto remete a outra proposição de Freire: “a corporificação das palavras pelo exemplo” (idem, 2014, p.35). A prática profissional não pode jamais negar o que o discurso defende. Se a defesa é pela educação dialógica, o professor não pode manter uma postura antidialógica. E assim, a partir da construção de um espaço dialógico, podem abrir-se os caminhos para desenvolver os eixos seguintes da perspectiva freireana, crítica e libertária, de educação.
É justamente o diálogo verdadeiro que possibilita outra importante categoria do pensamento de Freire: a problematização. Para Paulo Freire o processo de educação deve ser problematizador e libertador. As questões, bem como as soluções a serem buscadas, devem ser propostas e desenvolvidas pelos educandos em conjunto com o educador, e não por meio da imposição unilateral. (Freire, 2011)
A problematização, portanto, é um processo oposto à educação bancária. Esta, por sua vez, consiste no “ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos” (ibid., p.82). Assim, educação problematizadora consiste primeiramente na superação desta contradição entre educador e educando, ou seja, a verticalização da relação entre professor e alunos. Daí a necessidade da dialogicidade como pressuposto para a problematização.
Como método, a educação problematizadora é iniciada
até na busca do conteúdo programático. O diálogo não começaria quando os
agentes do processo educativo se encontram já em uma situação pedagógica, mas
sim antes, “quando aquele
[educador-educando] se pergunta em torno do que vai dialogar com estes [educandos-educadores]”
(ibid., p.115).
Para concretizar o processo de problematização, Freire propõe o uso dos Temas Geradores. Estes consistem numa leitura coletiva da situação presente em que todos estão inseridos; refletindo e analisando os problemas, as demandas e as aspirações de tal núcleo participante do processo educativo.
Novamente, os Temas Geradores não podem ser impostos, transmitidos verticalmente. E novamente, eles não podem ser propostos nem trabalhados sem que haja um processo de diálogo. Apenas coletivamente e dialogicamente os participantes do processo educativo poderão definir os temas e problemas a serem estudados.
Segundo Freire (ibid.), um Tema Gerador seria um “universo mínimo temático”. Mas para compreender melhor isto, devemos partir do mesmo pressuposto do autor, de que o ser humano não um ser fechado em si, mas sim um ser histórico, social, coletivo. Assim, o Tema Gerador estaria diretamente relacionado com um estudo do meio em que estamos inseridos, para compreendê-lo melhor sem jamais nos alienarmos dele. Freire, ao utilizar como suporte de sua teoria o marxismo, defende que o ser humano entenda-se na totalidade em que está inserido (social, espacial, histórica), e não de forma fragmentada.
Assim, a investigação dos Temas Geradores se daria de forma a enxergar a totalidade, dialeticamente:
A questão fundamental, neste caso, está em que, faltando aos homens uma compreensão crítica da totalidade em que estão, captando-a em pedaços nos quais não reconhecem a interação constituinte da mesma totalidade, não podem conhecê- la. E não o podem porque, para conhecê-la, seria necessário partir do ponto inverso. Isto é, lhes seria indispensável ter antes a visão totalizada do contexto para, em seguida, separarem ou isolarem os elementos ou as parcialidades do contexto, através de cuja cisão voltariam com mais claridade à totalidade analisada. (Freire, 2011, p.133)
A problematização, através de sua construção de forma dialógica, vai aos poucos fornecendo caminhos e espaços para que educadores e educandos compreendam melhor o mundo ao seu redor, e possam usar e aprender os conhecimentos de uma maneira a contribuir com a transformação deste contexto.
Através de um processo problematizador, dialógico, em que os educandos participam ativamente das decisões e da construção do conhecimento, Freire considera que o ambiente se torna propício ao desenvolvimento do pensamento crítico e autônomo; da autonomia.
Devemos ressaltar que esta transformação jamais é pontual ou instantânea. Pelo contrário, é uma transição resultante de um longo e duradouro processo. Na realidade, toda e qualquer atividade pode tornar o indivíduo e os grupos um pouco mais autônomos sobre um ponto específico, e é a soma destes pequenos "tijolos" que constroem, que formam um ser crítico e autônomo.
Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. Por outro lado, ninguém amadurece de repente, aos vinte e cinco anos. A gente vai amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É neste sentido que uma pedagogia da autonomia tem de
estar centrada em experiências estimuladoras da decisão e da responsabilidade, vale dizer, em experiências respeitosas da liberdade. (Freire, 2014, p.105)
Para o autor (2014), este processo não consiste na ruptura entre a ingenuidade e criticidade, mas sim em uma superação. Freire considera que a curiosidade ingênua aquela aliada ao senso comum transforma-se em curiosidade epistemológica que é, por sua vez, metodicamente rigorosa através do processo educativo libertador. É no diálogo constante, desde a problematização até a busca por soluções e por conhecimentos, e como estes se aplicam nos devidos problemas elencados, que se abre o espaço e se desenvolve cada vez mais a autonomia.
Além disso, a criticidade também consiste, para o
professor, na reflexão crítica sobre a sua prática. Segundo Freire (ibid.,
p.39), “a prática docente crítica [...]
envolve o movimento dinâmico, dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer”.
Ou seja, da mesma forma que a curiosidade epistemológica depende de uma
rigorosidade metódica, isto também vale para a prática docente. Para deixar de
ser espontânea, ingênua, e passar a ser crítica, autônoma, a prática docente
deve ser reflexiva e consciente de si.
Parte do processo de desenvolvimento da autonomia é entender-se e reconhecer-se como ser sujeito à identidade cultural. Assumir as situações é um fator necessário para superá-las, embora Freire deixe claro que só esta assunção não signifique automaticamente a superação.
Além de sermos influenciados pela identidade cultural vigente, também é importante nos reconhecermos como seres condicionados. Freire considera que não estamos imunes às forças sociais, culturais e históricas. Pelo contrário, estas forças têm influência sobre a construção do nosso eu. Claro, existe um movimento dialético entre a liberdade e o condicionamento.
Apesar de fortes, os fatores sócio-históricos não são, na perspectiva crítica, determinantes, fatalistas. O ser como sujeito histórico também é ator e autor de sua historicidade.
E ao se reconhecer como autores desse processo, ao participar da análise e da interpretação de nosso contexto através da problematização e do diálogo, assim vamos criando, desenvolvendo e refinando os elementos necessários a um perfil autônomo. Percebemos através desta breve análise que não há forma de alienar as categorias do pensamento freireano.
A expressão Aprendizagem Cooperativa faz referência a um conjunto teórico e metodológico de ensino e aprendizagem desenvolvida por diversos autores estadunidenses, tais como David W. Johnson, Roger T. Johnson, Robert Slavin, entre outros, a partir da década de 1970.
David e Roger Johnson são grandes defensores da cooperação. Os seres humanos são seres sociais, desde o primórdio da humanidade pertencentes a pequenos grupos.
Há mais de 200 000 anos que a nossa espécie vive em pequenos agregados, grupos de caça e em pequenas comunidades agrícolas. Ao longo do dia interagimos, primeiro num desses grupos e, depois, no outro. A nossa vida familiar, o nosso tempo de lazer, as relações de amizade, bem como os nossos percursos profissionais são preenchidos por grupos. Na verdade, se um extraterrestre levasse a cabo um estudo sobre os terráqueos, a pertença aos grupos, provavelmente, apareceria como a sua característica dominante. (Johnson; Johnson, 2004)
Segundo os autores, as conquistas coletivas superam bastante o alcance das capacidades individuais. Apesar disso, a sociedade contemporânea vive em torno do "mito do gênio e da conquista individual" (Johnson; Johnson; Smith, 1998, p. 26). Pela leitura dos autores, as pessoas identificam-se profundamente com a ideia do herói. Por exemplo, nos esportes, o grande astro é, muitas vezes, vangloriado em detrimento da qualidade das equipes, quando na prática percebemos que esta mostra-se muito mais importante que características individuais isoladas. No mundo acadêmico e científico, esta cultura também está fortemente enraizada. As premiações científicas, tais como o Prêmio Nobel, são frequentemente individuais, apesar de serem frutos do trabalho de grupos de pesquisa, e terem maior ou menor, direta ou indiretamente, apoio material e não material de uma grande diversidade de pessoas. Na história da ciência, difundem-se e eternizam-se nomes como Aristóteles, Einstein, Lavoisier, Dalton, Darwin, Newton, dando a impressão de que são mitos solitários, que desenvolveram isoladamente diversos conhecimentos de extrema importância à ciência. Na realidade, o trabalho destes autores sempre foi feito em conjunto a outros colaboradores, e sempre partia de descobertas produzidas e acumuladas por várias gerações. A expressão de Newton "de pé sobre ombros de gigantes", que ganhou fama e tornou-se até título de uma obra do físico Stephen Hawking, faz referência ao caráter coletivo da construção da ciência, em oposição a um modelo individualista do trabalho científico.
Segundo Johnson, Johnson e Hollubec (1999), para que a Aprendizagem Cooperativa funcione bem, é necessário que cinco elementos essenciais sejam explicitamente incorporados às atividades: nterdependência social positiva; interação estimuladora frente-a-frente; responsabilidades individuais; habilidades de relação interpessoal; reflexão em grupo.
A interdependência social pode ser positiva (cooperação), negativa (competição), ou ausente (esforços individualistas). Em uma situação de interdependência social positiva, o sucesso de um grupo depende do sucesso e dos esforços de todos os membros deste grupo. Cada integrante tem claramente a ideia de que seus esforços individuais não beneficiarão apenas a ele próprio, mas também seus colegas. Reciprocamente, os esforços de seus colegas irão beneficiá-lo. A interdependência positiva cria um compromisso com o êxito de outras pessoas além do próprio, que é imprescindível ao sucesso do grupo como um todo.
In a football game, the quarterback who throws a pass and the receiver who catches it are positively interdependent. The success of one depends on the success of the other: It takes two to complete a pass. One player cannot succeed without the other, and both have to perform competently if their mutual success is to be assured. They sink or swin together[1] (Johnson; Johnson; Smith, 1991, p.16).
Os processos de interação estimuladora, preferencialmente frente-a-frente, relacionam-se ao trabalho coletivo dos membros de um grupo, onde eles devem promover o êxito uns dos outros, compartilhando recursos existentes, ajudando-se, respaldando-se, acalmando ou parabenizando uns aos outros por seu empenho em aprender. Para os autores, os grupos de aprendizagem são grupos de apoio escolar e respaldo pessoal. O encorajamento para estimular e facilitar os esforços dos colegas é um grande fator positivo e motivacional da Aprendizagem Cooperativa.
Em uma atividade verdadeiramente cooperativa, é necessário que existam responsabilidades individuais. Nenhum membro pode aproveitar-se do trabalho de outros. Cada membro deve assumir responsabilidades e cumprir com seus objetivos. A responsabilidade individual existe à medida em que as conquistas individuais são transmitidas ao grupo, e que o próprio grupo é capaz de perceber quais membros precisam de mais apoio para sua tarefa em questão.
Para qualquer relacionamento coletivo, é imprescindível ter habilidades de relações sociais bem desenvolvidas. Para coordenar o desenvolvimento de parceiros, é necessário que os membros conheçam uns aos outros, possuam confiança entre si, comuniquem-se de maneira eficaz e desambígua, saibam resolver conflitos de maneira construtiva.
Por fim, as atividades cooperativas devem sempre passar por momentos de reflexão em grupo. Neste momento, os integrantes de um grupo constroem coletivamente um processo de auto-avaliação (pessoal e do grupo como unidade). A reflexão sobre o funcionamento do grupo é importante para que estes entendam se estão percorrendo o melhor caminho, ou se há necessidade de mudanças ou melhorias.
Para Johnson, Johnson e Smith (1999), os grupos de Aprendizagem Cooperativa em sala de aula podem ser classificados de três formas: grupos de aprendizagem cooperativa formal; grupos de aprendizagem cooperativa informal; grupos de base cooperativa. Nos grupos de aprendizagem cooperativa formal, aplicados normalmente por uma aula ou uma sequência de aulas, alguma atividade ou tarefa é solucionada de maneira cooperativa, levando em conta os cinco elementos básicos necessários ao seu funcionamento. Já os grupos de aprendizagem cooperativa informal possuem uma duração muito mais curta (normalmente dentro de um período de uma única aula), e relacionam-se a uma pequena etapa em grupo, seja no início ou no fim de uma aula, para levantar ou resumir pontos trabalhados em aula. Por fim, os grupos de base cooperativa possuem uma estruturação muito mais complexa e planejada. Podem durar até um ano letivo inteiro, ou vários anos. São formados grupos permanentes e heterogêneos, e os pressupostos da Aprendizagem Cooperativa (como o momento da avaliação em grupo, ou o sucesso coletivo definido por meio dos sucessos individuais) são implicados de forma controlada e discriminada durante o processo de aprendizagem.
Para os autores, os grupos cooperativos aumentam bastante o potencial de aprendizagem de seus participantes, em relação a um aprendizado individualista. Por outro lado, a existência de pseudogrupos (grupos que não ajam cooperativamente, mas pelo contrário, promovam uma competição com maior proximidade) não só são menos eficazes, como podem até diminuir o rendimento do aprendizado de cada indivíduo. Assim é importante promover com planejamento e cuidado este tipo de metodologia, para que seja satisfatoriamente desenvolvida uma relação cooperativa (Johnson; Johnson; Hollubec, 1999).
Robert Slavin (2010), através de longos estudos, fez
um levantamento de diversas estratégias de ensino e aprendizagem que envolvem
os princípios da Aprendizagem Cooperativa em suas bases. Algumas metodologias
que podemos citar são o Student Team
Achievement Divisions (STAD), Teams-Games- Tournaments (TGT), Team Assisted
Individualisation (TAI), Cooperative Integrated Reading and Composition (CIRC),
Peer-Assisted Learning Strategies (PALS), IMPROVE, Jigsaw, Learning Together,
Group Investigation. Todas as estratégias
são estruturadas de forma tanto a promover os cinco elementos básicos
citados por Johnson e colaboradores (1991; 1998; 1999; 2004) – interdependência
positiva, interação estimuladora, responsabilidades individuais, habilidades
interpessoais, reflexão em grupo.
Ao discorrer os diferentes eixos teóricos elencados ao longo desde trabalho, podemos perceber diversos pontos do pensamento freireano e da AC em sintonia.
A questão da dialogicidade como caminho para a educação e libertação em comunhão não faz sentido em um contexto competitivo ou individualista. Apenas em um contexto em que haja interdependência positiva podemos esperar que os sujeitos do processo educativo (educandos-educadores e educadores-educandos) possam buscar a apropriação e produção de conhecimentos e significados através do diálogo, com o objetivo de promover o desenvolvimento autônomo de seus companheiros e de si mesmos.
Além disso, quando os companheiros estão alinhados nos mesmos objetivos, as interações estimuladoras passam a surgir com mais frequência. Em contextos individualistas os educandos não sentem necessidade de auxiliar no sucesso de seus colegas. Eles apenas o fazem quando existem elos pessoais de amizade e afeto envolvidos.
Por outro lado, nos ambientes cooperativos, onde o sucesso coletivo significa o sucesso individual de todos os membros, somado ao fato de que todos possuem responsabilidades individuais, os colegas são induzidos a se esforçar não apenas para si próprios, mas para auxiliar seus companheiros também.
No processo dialógico, fica claro que outros elementos da AC são necessariamente presentes por essência. As habilidades sociais são constantemente estimuladas e desenvolvidas em espaços voltados para o diálogo. Simetricamente, as metodologias de ensino-aprendizagem cooperativas promovem essencialmente a dialogicidade.
Como ressaltamos anteriormente neste trabalho, a dialogicidade é um princípio determinante ao processo de problematização. Somamos a esta afirmação a necessidade de um ambiente de interdependência positiva, para que os participantes busquem refletir sobre os problemas e suas soluções não focados em objetivos individuais, mas sim coletivos.
Através do processo coletivo de problematização dialógico, a autonomia pode ser fortalecida. A problematização também se apresenta potencialmente como um norte comum a todos os membros, ajudando assim a criar uma coesão social no grupo. Isto facilita a construção de um espaço cooperativo.
Além disso, o trabalho em grupo cooperativo exige espaços e momentos de reflexão dos processos desenvolvidos. Estes momentos são bastante importantes para amadurecer as ideias e ações dos participantes, e incentivar mais ainda a autonomia de seus membros.
De acordo com Ribeiro (2015), a AC tem uma grande e principal contribuição à Educação Libertária: a promoção de uma experiência prática democrática. “Ao adotarmos a AC [...] pressupomos que a cidadania não se aprende por meio de aulas teóricas, mas sim na prática” (ibid., 185).
Numa situação proposta a partir de metodologias ou princípios da AC, os educandos poderiam vivenciar a investigação de um problema, proposição de uma solução e construção prática desta mesma solução, sempre a partir do diálogo democrático para buscar a tomada de decisões.
Consideramos que esta vivência consistiu numa prática educativa realmente voltada para que os educandos desenvolvam elementos fundamentais de um posicionamento crítico, autônomo e atuante.
Ressaltamos que a emancipação ou formação crítica é um processo longo e talvez até interminável. Não é uma ação, uma experiência ou um episódio, e sim um longo processo que permeia toda a vida do ser humano. Seria muita presunção achar que uma atividade de alguns meses letivos pudesse "emancipar" nossos alunos.
Por outro lado, consideramos que podemos e devemos sim criar ambientes propícios à formação do pensamento crítico, sempre que possível. Assim, consideramos que nosso projeto incentivou o desenvolvimento de certos elementos necessários à formação crítica: a problematização, a autonomia e a dialogicidade. Ao criar espaços propícios para o diálogo, à problematização e à tomada crítica de decisões, julgamos estar propiciando o desenvolvimento dos elementos que visam promover uma Educação Ambiental Crítica – ou simplesmente, uma Educação Crítica. Para tanto, elementos da aprendizagem cooperativa foram acionados ao longo da atividade, contribuindo para os processos desenvolvidos.
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[1] Optamos por não traduzir esta citação, pois ao tratar-se de um exemplo
próprio do futebol americano (football), mas possuir termos iguais ao do
futebol comum, como por exemplo quarterback relativo ao zagueiro, pass
traduzido para passe, seus sentidos nos dois jogos são completamente
diferentes.