Paulo Freire. Revista de Pedagogía Crítica

Año 15, N° 18 Julio – Diciembre 2017

ISSN 0717 – 9065      ISSN ON LINE 0719 – 8019

pp. 177 - 201

 

 

 

 

O NOVO CICLO DE REFORMAS EDUCACIONAIS NO BRASIL: CONCEPÇÕES, AGENTES E PROCESSOS

 

EL NUEVO CICLO DE REFORMAS EDUCACIONALES EN BRASIL: CONCEPCIONES, AGENTES Y PROCESOS

 

THE NEW CYCLE OF EDUCATIONAL REFORMS IN BRAZIL: CONCEPTIONS, AGENTS AND PROCESSES

 

Eduardo Donizeti Girotto*

Resumo.

Estamos diante de um novo ciclo de reformas educacionais no Brasil, concebido a partir de uma lógica de controle técnico, burocrático e gerencial do trabalho docente, que retoma processos colocados em prática nas décadas de 1980 e 1990 em diversas partes do mundo. Com o intuito de compreender os agentes, interesses e estratégias presentes neste novo ciclo, analisamos, documentos publicados por organismos internacionais e institutos financiados por grupos empresariais com atuação no Brasil e no mundo que têm lugar de destaque na elaboração das atuais políticas educacionais. Na análise realizada, verifica-se que o principal objetivo expresso nos documentos é a contenção dos investimentos diretos em educação pública. Para tanto, propõem-se mudanças, principalmente, na forma de contratação e organização das carreiras docentes no país, consideradas responsáveis pela crise orçamentária brasileira. As análises demonstram a importância de compreender quem são os principais agentes do novo ciclo de reformas educacionais no país, bem como os interesses que expressam. Trata-se de ação fundamental na luta pela construção de uma escola pública equitativa e democrática no Brasil que passa, necessariamente, pela ampliação dos investimentos com o intuito de garantir as condições fundamentais para a ação educativa.

 

Palavras-chaves: Reformas Educacionais; Trabalho Docente; Banco Mundial; Eficiência; Gestão.

 


 

*    Universidad de Sao Paulo - Brasil; egirotto@usp.br Fecha de Recepción: 25 julio 2017

Fecha de Aceptación: 16 noviembre 2017


 

Abstract.

We are facing a new cycle of educational reforms in Brazil, conceived on the basis of a logic of technical, bureaucratic and managerial control of teaching work, which takes up processes put into practice in the 1980s and 1990s in various parts of the world. In order to understand the agents, interests and strategies present in this new cycle, we analyze documents published by international organizations and institutes financed by business groups operating in Brazil and in the world that are prominent in the elaboration of current educational policies. In the analysis carried out, it is verified that the main objective expressed in the documents is the containment of the direct investments in public education. Therefore, changes are proposed, mainly in the form of contracting and organization of teaching careers in the country, considered responsible for the Brazilian budget crisis. The analyzes demonstrate the importance of understanding who are the  main players in the new cycle of educational reforms in the country, as well as the interests they express. This is a fundamental action in the struggle for the construction of an equitable and democratic public school in Brazil that necessarily involves the expansion of investments in order to guarantee the fundamental conditions for educational action.

 

Keywords: Educational Reforms, Teaching Work, World Bank, Efficiency, Management

 

Resumen.

Estamos ante un nuevo ciclo de reformas educativas en Brasil, concebido a partir de una lógica de control técnico, burocrático y gerencial del trabajo docente, que retoma procesos puestos en práctica en las décadas de 1980 y 1990 en diversas partes del mundo. Con el fin de comprender los agentes, intereses y estrategias presentes en este nuevo ciclo, analizamos, documentos publicados por organismos internacionales e institutos financiados por grupos empresariales con actuación en Brasil y en el mundo que tienen lugar de destaque en la elaboración de las actuales políticas educativas. En el análisis realizado, se verifica que el principal objetivo expresado en los documentos es la contención de las inversiones directas en educación pública. Para ello, se proponen cambios, principalmente, en la forma de contratación y organización de las carreras docentes en el país, consideradas responsables de la crisis presupuestaria brasileña. Los análisis demuestran la importancia de comprender quiénes son los principales agentes del nuevo ciclo de reformas educativas en el país, así como los intereses que expresan. Se trata de una acción fundamental en la lucha por la construcción de una escuela pública equitativa y democrática en Brasil que pasa necesariamente por la ampliación de las inversiones con el fin de garantizar las condiciones fundamentales para la acción educativa.

 

Palabras-claves: Reformas Educativas; Trabajo Docente; Banco Mundial; Eficiencia; Gestión


 

INTRODUÇÃO

 

«Rede estadual de SP enfrenta saída recorde de professores».

Folha de São Paulo, 17/11/2015

 

 

A manchete anterior foi publicada no principal jornal escrito do Brasil e revela uma das mais perversas dimensões das políticas públicas de educação postas em práticas nos últimos 20 anos no estado de São Paulo: a destruição da carreira docente e o abandono da mesma por professores atuais e futuros. Baseada no controle técnico, burocrático e gerencial da ação docente (Apple, 2006), no achatamento salarial e na precarização das condições de carreira, tal política tem produzido a diminuição do interesse pela profissão na rede estadual de Educação de São Paulo.

Pautadas na ideia de avaliação e responsabilização, tais políticas apontam os docentes como os principais (se não, os únicos) responsáveis pelo desempenho dos estudantes em testes padronizados, em especial, o Sistema de Avaliação de Rendimento do Estado de São Paulo (SARESP), criado em 1996. A política de responsabilização docente tem como principal objetivo ocultar a responsabilidade dos outros sujeitos da educação pública, em especial, o governo do Estado, que assim continua a não realizar os investimentos necessários para criar as condições para o desenvolvimento da ação educativa.

No entanto, apesar do fracasso educacional da rede estadual de São Paulo, verificada pela saída de professores, pelo baixo aproveitamento dos estudantes no que se refere a capacidade de leitura, de realização de cálculos,  de compreensão crítica dos fenômenos naturais, sociais e suas interrelações, os gestores destas políticas foram alçados a posição de destaque no cenário nacional, ocupando cargos no Ministério da Educação. O que, a princípio, poderia se configurar uma contradição, se olhado com maior detalhe, se expressa como continuidade de um projeto que visa construir um modelo de educação  economicamente  viável  a  luz  das  atuais  disputas  pelo  orçamento público. Tal lógica de contenção dos investimentos em educação está no centro do atual ciclo de reformas educacionais na América Latina. Trata-se de lógica construída a partir de nova concertação política, na qual se destacam, como principais agentes, o empresariado transnacional e diferentes organizações criadas pelos mesmos para difundir um discurso com vistas a elencar os princípios da nova gestão pública como modelo a ser seguido na educação.

No caso brasileiro, grupos como Instituto Airton Senna, Fundação Lehman, Instituto Alfa e Beto, Todos pela Educação, Instituto Itaú Unibanco são os principais interlocutores das reformas educacionais, fazendo a mediação entre os órgãos do governo (MEC, Secretarias Estaduais e Municipais), com o empresariado transnacional e os seus organismos representantes (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, Banco Mundial, Fundação Melina e Bill Gates). Com esta mediação, têm conseguido avançar nas políticas educacionais que representam os interesses deste setor, expressos em documentos publicados em seus sites. Por isso, necessitam da indicação de nomes alinhados a esta lógica. Em certa medida, isto explica a nomeação da ex- secretária estadual de educação de São Paulo, Maria Helena Guimarães Castro, uma das responsáveis pelo caos que vive a rede atualmente, para o cargo de Secretária Executiva do MEC, profundamente alinhada com a lógica das políticas educacionais, pautado na dupla avaliação e responsabilização docente. É importante destacar que a nomeação de pessoas vinculadas aos interesses do setor empresarial e dos organismos internacionais para cargos do Ministério da Educação e dos órgãos a ele subordinados não é novidade. é prática recorrente, há, pelo menos, duas décadas, e não foi rompida durante a gestão do Partido dos Trabalhadores. Ao contrário, o que nos traz maior preocupação, é que tais grupos ganharam espaço durante tal gestão, influenciando os rumos das políticas educacionais brasileiras[1]. Trata-se de mais uma face do discurso de conciliação de classes adotados pelos governos do PT e que, como demonstra a atual crise política, resultaram na própria desconstrução do partido como força progressista da política brasileira.

No entanto, não é possível compreender o papel desempenhado por estes grupos na condução das políticas educacionais se não entendermos as relações mais amplas entre educação e economia no interior do modo de produção capitalista, considerando as especificidades da formação socioespacial brasileira. Só com o entendimento do que significa o estado nacional brasileiro, no qual o orçamento é o tempo todo disputado por agentes das mais diferentes escalas espaço-temporais, é que podemos compreender por que o empresariado transnacional busca, a todo momento, intervir nos rumos das políticas educacionais, em suas mais diferentes dimensões.

Dessa forma, apresentamos, neste texto, a análise construída a partir da leitura de alguns documentos publicados por estes grupos e institutos e que expressam as posições dos mesmos acerca das concepções que devem nortear  as reformas educacionais no Brasil e no Mundo. Apresentamos, a seguir, os documentos analisados neste texto:


Quadro 1: Documentos analisados

Texto

Autores

Ano de Publicação

Identifying effective teachers using

performance on the job.

GORDON, R.; KANE, T.

STAIGER, D.

2006

Achieving world class education in

Brazil: the next agenda.

Banco Mundial

2010

Professores excelentes: Como melhorar a aprendizagem dos estudantes na América Latina e no

Caribe

Banco Mundial

2014

Competências para o progresso

social: o poder das competências socioemocionais

OCDE / Instituto Airton Senna / Fundação Santillana

2015

Construindo uma educação de qualidade: um pacto com o futuro da América Latina / Comissão Para a Educação de Qualidade para

Todos

Instituto Airton Senna

2016

Fonte: Elaborado pelo autor, julho de 2017.

 

Como dissemos, a escolha dos referidos documentos está diretamente articulada ao papel que os seus elaboradores desempenham na construção das atuais políticas educacionais no país. As ideias ali defendidas, como demonstraremos no decorrer deste trabalho, estão no centro de medidas anunciadas e executadas nas últimas décadas, com implicações amplas para a precarização do trabalho docente. Após a análise dos documentos, buscamos demonstrar como tais concepções estão presentes na Reforma do Ensino Médio, aprovada em fevereiro de 2017. Por fim, apontamos os desafios que se colocam, no atual contexto, para a construção de uma escola pública democrática e equitativa no Brasil.

 

A     DISPUTA     PELO    ORÇAMENTO     E     LÓGICA     GERENCIAL     DA EDUCAÇÃO

Iniciamos a análise com o documento Achieving world class education in Brazil: the next agenda), publicado pelo Banco Mundial em 2010. Não se trata do mais antigo na lista dos documentos analisados, mas possui centralidade no novo ciclo de reformas, uma vez que seus principais argumentos são citados e retomados nos outros documentos. Além disso, é o único documento entre os analisados que se refere, especificamente, a realidade brasileira.

Neste material, está explícita a compreensão de que o principal desafio para os próximos governos brasileiros é diminuir o custo da educação no país. No documento, a principal causa de aumento de tais custos são os gastos com salários docentes, considerados peso excessivo nos orçamentos públicos nas diferentes esferas de governo. Segundo o documento, a situação orçamentária teria piorado na última década em decorrência de contínuos aumentos salarias, em uma crítica indireta a lei do piso aprovada em 2008[2].

Segundo o documento, além dos aumentos salariais, outros dois fatores seriam responsáveis pelo aumento do peso dos salários docentes sobre os orçamentos públicos: o número pequeno de alunos por sala de aula e a alta exigência de formação para ingressar na carreira. É interessante notar que, em relação ao primeiro aspecto citado, há uma contradição entre o documento do Banco Mundial e o relatório Education at a Glance da OCDE, publicado em 2016, que aponta que o número de alunos por professores no Brasil é o mais alto da América Latina. É importante ressaltar que este equívoco do documento não pode ser tomado como um equívoco, uma vez que esta concepção tem norteado ações de diferentes redes de educação no Brasil, como o projeto de reorganização escolar apresentado pelo governo de São Paulo em setembro de 2015.

Entre as soluções propostas pelo Banco Mundial para diminuir o custo da educação no Brasil estão mudanças na contratação de professores, facilitando o ingresso na carreira de profissionais não formados na área. O documento cita o trabalho desenvolvido por Kane et al de 2006 (Identifying effective teachers using performance on the job). No documento, aponta-se a centralidade do trabalho docente nas reformas educacionais. Segundo os autores,

Nas duas últimas décadas, reformadores políticos têm buscado melhorar  a qualidade da educação fundamental e média nos EUA. Visto que o sistema público de educação dos EUA tem se tornado um problema para a o crescimento da produtividade e é uma das causas do aumento da desigualdade, tem-se buscado uma sucessão de reformas – de avaliações padronizadas a diminuição do tamanho das salas. Mas o sucesso do sistema público de educação nos EUA depende das habilidades de 3.1 milhões de professores nas salas de aula de escolas fundamentais e médias ao redor do país. Cada uma destas coisas – padrões educacionais, testes, tamanho das classes, quantificação – é o pano de fundo que suporta as cruciais interações entre os professores e os seus estudantes. Sem as pessoas certas na frente das salas de aula, a reforma escolar é um exercício fútil (Kane et al, 2006, p. 4).

 

Frente a esta centralidade, os autores defendem mudanças no processo de ingresso na carreira, indicando a redução de barreiras de entrada na profissão docente para aqueles sem certificação tradicional de professor. O controle se daria pela avaliação da eficiência dos novos docentes nos dois primeiros anos de carreira, sendo apenas efetivados nos cargos aqueles que fossem, comprovadamente, considerados eficazes. Para tanto, os autores apresentam uma equação quase inintelígevel, com a qual poderia se medir, matematicamente, a eficiência dos professores. Após a efetivação dos docentes, as redes de ensino deveriam fornecer bônus para aqueles “altamente eficazes dispostos a ensinar nas escolas com elevada percentagem de alunos de baixa renda” (Kane et al, 2006, p. 32).

Pela proposta dos autores, a lógica de formação docente se reduziria a um treinamento que poderia, inclusive, ser feito de forma aligeirada. Esta forma de treinamento é apontada no documento do Banco Mundial de 2010 citando a experiência da organização não-governamental Teachers for all que tem, entre suas propostas, um curso de treinamento docente de quatro semanas para profissionais que não têm formação superior em Pedagogia ou Licenciatura. A ideia de permitir a entrada na carreira de profissionais não certificados implica em recusar as características próprias desta formação e, com isso, significa intenso retrocesso na luta pela profissionalização docente.

Neste processo, o currículo e as avalições padronizadas têm cumprido uma importante função de controle técnico do trabalho docente, como bem discutido por Michael Apple (2002) a partir da realidade estadunidense.

Com a utilização crescente de sistemas curriculares pré-empacotados, adotados como sendo a forma curricular básica, não é exigida virtualmente nenhuma  interação por parte do professor. Se praticamente tudo é racionalizado e especificado previamente à execução, então o contato entre os professores a respeito de assuntos curriculares reais é minimizado (Apple, 2002, p. 162).

 

O caso do currículo do Estado de São Paulo é emblemático desta situação: feito em três meses, no final do ano letivo de 2007, não contou com ampla participação dos professores da educação básica, sendo apresentada aos mesmos no primeiro dia letivo do ano de 2008. Além de apostilas entregues aos alunos e alunas, há um caderno didático distribuído aos docentes demonstrando como os mesmos devem trabalhar aula por aula. Há que se ressaltar que a tentativa de “convencimento” dos professores veio acompanhada de mecanismo de controle que articulam o desempenho dos estudantes em avaliações padronizadas a bonificações salariais pagas aos professores. Tais avaliações também não contaram com a participação dos docentes, sendo elaboradas ora por técnicos da Secretaria Estadual da Educação, ora por empresas privadas do ramo. Os conteúdos destas avaliações estão referenciados no currículo oficial. Portanto, se o convencimento  ideológico falhar, o controle técnico e burocrático fará o trabalho de garantir a adesão dos professores à reforma educacional proposta.

Em documento mais recente, denominado “Professores Excelentes: como melhorar a aprendizagem dos estudantes na América Latina”, o Banco Mundial reforça esta concepção de avaliação pautada em currículos unificados e testes padronizados.

Um volume cada vez maior de dados de testes dos estudantes, particularmente nos Estados Unidos, que permite aos pesquisadores medir o valor agregado de cada professor no decorrer de um único ano letivo, gerou clara evidência dos diversos graus de eficácia dos professores, até na mesma escola e na mesma série. Os alunos com um professor mais fraco podem dominar 50% ou menos do currículo para aquela série: alunos com um bom professor têm um ganho médio de um ano; e estudantes com professores excelentes avançam 1,5 série ou mais (BM, 2014, p. 6)

 

E aqui encontramos um conceito-chave que nos ajuda a compreender a relação entre currículo unificado, testes padronizados e controle do trabalho docente: eficiência. Tal conceito tem norteado a quase totalidade das políticas mais recentes de educação para a América Latina com forte viés tecnicista e é uma das narrativas centrais nos documentos analisados neste artigo. A ideia de eficiência fomenta a busca por processos que reduzam investimentos e ampliem resultados em educação, quase todos medidos por testes padronizados. Para que o conceito de eficiência possa estar no centro de tais políticas que, como apontam o Banco Mundial, precisam reduzir os custos da Educação Pública, é preciso criar mecanismos que possibilitem a redução do conceito de qualidade, associando-a a aferição simples dos resultados em testes padronizados, como forma de criar um ambiente de contenção de gastos, como podemos verificar no trecho a seguir, retirado de documento de 2016, publicado pelo Instituto Airton Senna em parceria com a Fundação Santillana:

 

Mesmo que ainda haja margem para expandir os orçamentos educativos em alguns países, considerando o panorama econômico e fiscal menos positivo que a região enfrenta, de maneira geral os sistemas educativos se verão obrigados a ser mais eficientes na destinação e no uso de recursos nos anos seguintes. Melhoras na eficiência na distribuição e no uso de recursos devem ser um aspecto imprescindível para garantir a sustentabilidade dos esforços pela melhoria da qualidade educativa (Instituto Airton Senna, 2016, p. 32)


Para se alcançar esta eficiência, todos os documentos analisados apontam a necessidade de que as políticas educacionais ampliem a relação entre os setores públicos e privados na gestão da educação pública. Há que se ressaltar que tal concepção já estava apresentada nos debates travados e no documento final da Conferência Educação para Todos, ocorrida em Jointem, na Tailândia em 1991. Ali já aparece a ideia de que, por conta dos problemas orçamentários, os países pobres deveriam focalizar os seus esforços na garantia do acesso da população ao ensino fundamental, realizando parcerias com a iniciativa privada para o oferecimento das outras etapas da educação. Esta ideia é reforçada no documento “La enseñanza superior”, publicado em 1994 pelo Banco Mundial, em que a defesa da privatização do ensino médio e do ensino superior são mais claramente explicitados.

No documento de 2010, o Banco Mundial retoma esta proposta, defendendo a necessidade, de um lado, de construir outros arranjos institucionais que possibilitem a cobrança de mensalidades nas universidades públicas e, de outro, que sejam estabelecidas parcerias com o setor empresarial para mudanças curriculares no ensino médio. Esta proposição é retomada pelo documento de 2016, como podemos verificar a seguir:

Claramente, o custo desta expansão dependerá do esquema de financiamento adotado. Um modelo no qual a expansão de cobertura se baseie 100% em financiamento público demandará aumentos importantes no orçamento educativo e, em muitos casos, questionará a sustentabilidade financeira do sistema em sua totalidade. Por isso, esquemas de financiamento compartilhados, que envolvam uma mistura de taxas em instituições públicas, subsídios em instituições privadas e créditos, é uma resposta natural – em particular quando se considera o papel crescente das instituições privadas na prestação de serviços no segmento de educação superior (Instituto Airton Senna, 2016, p. 33).

 

Nos documentos analisados, o principal argumento utilizado para defender a contenção de investimentos e a ampliação das parcerias com o setor privado[3] é o de que o Brasil alcançou, atualmente, os mesmos percentuais de investimento do PIB em educação dos países membros da OCDE. Tal argumento se constitui uma falácia porque desconsidera dois elementos essenciais: de um lado, o processo histórico de constituição da educação pública nos diferentes países e sua relação com a formação do estado nacional como garantidor de direitos sociais. De outro, o tamanho das redes de educação e do PIB de cada um destes países. Isso explica um dado com o qual os documentos analisados pouco dialogam: o investimento per capita por aluno é muito diferente entre o Brasil e os países da OCDE. Se levarmos em consideração o fato de estarmos distantes da construção de um estado capaz de garantir os direitos sociais nas mais diferentes áreas, veremos a perversidade de uma proposta de diminuição ou de contenção dos investimentos em educação no Brasil e suas consequências em médio e longo prazo.

Este foco do gerenciamento e controle do trabalho docente está bastante evidente no documento publicado pelo Banco Mundial em 2014. Segundo os autores, trata-se do resultado da observação de mais de 15 mil horas de aulas em toda a América Latina, o que possibilitou compreender as características de um professor eficiente. Segundo o documento, a eficiência docente passa pela gestão da sala de aula que resulta, diretamente, na melhoria da aprendizagem dos estudantes. Segundo os dados apresentados no documento, nas escolas com melhores resultados no IDEB no município do Rio de Janeiro, os docentes utilizam 70% do tempo em sala de aula com instrução. Já nas escolas com os piores IDEB, este número cai para 54%.


Pelos dados, é possível perceber a tentativa de estabelecer uma relação direta entre o tempo de exposição de conteúdos na sala de aula e melhorias dos resultados no IDEB. Neste processo, todas as outras dimensões que afetam a relação professor-aluno são desconsideradas, o que resulta em uma interpretação equivocada sobre a relação entre o trabalho docente e a aprendizagem discente. Estamos diante, nesta análise, daquilo que Azanha denominou de abstracionismo pedagógico:

Entendendo-se a expressão como indicativa da veleidade de descrever, explicar ou compreender situações educacionais reais, desconsiderando as determinações específicas de sua concretude, para ater-se apenas a “princípios” ou “leis” gerais que na sua abrangência abstrata seriam, aparentemente, suficientes para dar conta das situações focalizadas (2011, p. 42)

 

Na lógica do abstracionismo pedagógico, o contexto da prática educativa é negado, contribuindo na reprodução de uma lógica curricular unitária e que não respeita a autonomia e a diversidade que, em nossa perspectiva, são alguns dos fundamentos do trabalho educativo. Além disso, nesta lógica, o próprio currículo se apresenta como um objeto técnico-científico-informacional (Santos, 2014), construído em determinado contexto e por certos agentes sociais, cujas intencionalidades nunca estão plenamente evidentes para aqueles aos quais tal material foi direcionado.

No último documentado analisado, publicado em 2015 em uma parceria entre a OCDE, o Instituto Airton Senna e a Fundação Santillana, este gerenciamento do trabalho docente está presente a partir do conceito de competências socioemocionais. O trecho a seguir apresenta algumas pistas para entendermos a origem deste termo:

Quais são as competências que estimulam o bem-estar e o progresso social? Legisladores, incluindo 11 ministros e vice-ministros da Educação, discutiram essa questão na reunião ministerial informal da OCDE sobre “Competências para o Progresso Social” em São Paulo, Brasil, em 23 e 24 de março de 2014. Chegaram a um acordo unânime sobre a necessidade de desenvolver uma “criança completa” com um conjunto equilibrado de competências cognitivas e socioemocionais que lhe


permitam enfrentar melhor os desafios do século 21. Pais, professores e empregadores sabem que crianças talentosas, motivadas, focadas em resultados e que agem colegiadamente são mais propensas a superar dificuldades, ter um bom desempenho no mercado de trabalho e, consequentemente, alcançar sucesso na vida (OCDE, 2015, p. 5).

 

Resultado, portanto, de uma reunião organizada pela OCDE, em 2014, em parceria com o Instituto Airton Senna, o discurso das competências socioemocionais busca desenvolver, a partir das escolas, valores como foco nos resultados, autoestima, motivação, entre outros. É interessante perceber que tais valores estão na base dos principais manuais de administração capitalista, bem como no amplo conjunto de literatura de autoajuda vendido como best sellers nas principais livrarias do país. Mais o discurso das competências socioemocionais vai ainda mais longe:

O ambiente socioeconômico atual apresenta desafios que afetam o futuro das crianças e dos jovens. Embora o acesso à educação tenha melhorado, uma boa formação não é mais o único requisito para garantir um emprego; os jovens têm sido atingidos pelo crescente desemprego pós-crise econômica. Problemas como obesidade e diminuição do engajamento cívico crescem. O envelhecimento da população e o panorama ambiental preocupam. As desigualdades sociais e no mercado de trabalho tendem a aumentar. A educação tem enorme potencial para enfrentar esses desafios, melhorando competências. As competências cognitivas e as socioemocionais, como a perseverança, o autocontrole e a resiliência, têm a mesma importância. É preciso incentivar todas as competências para indivíduos e sociedades prosperarem.

 

Neste trecho, fica evidente a função central que o conceito deverá cumprir na escola, modificando o trabalho do professor. Nesta nova perspectiva, cabe à escola, através do professor, ajudar os alunos a formarem valores individuais, que lhes permitirão competir em um mundo marcado pelas desigualdades. Nesta perspectiva, não se trata mais de possibilitar aos alunos e alunas, através da apropriação de conteúdos, conceitos, linguagens e instrumentos, o entendimento do mundo, com vista à superação de suas principais contradições, através de ações individuais e coletivas. Ao contrário, o objetivo é fazer com os estudantes desenvolvam certos valores que interessam aos agentes do mercado de trabalho, fomentando a competição e ampliando a responsabilização dos sujeitos pelos seus sucessos e fracassos. As crises deixam de ser, nesta perspectiva, construções históricas, modificáveis, e passam a ser dados imutáveis da realidade.

A crítica ao discurso das competências socioemocionais não significa o desconhecimento da dimensão afetiva de toda relação educativa. Ao contrário, como aponta Paulo Freire (1992), a amorosidade se constitui como um dos elementos essenciais na construção da dialogia entre professor e aluno, mediados pelo mundo. No entanto, trata-se de superar uma lógica que reduz a afetividade ao domínio técnico-instrumental, que a encerra no campo individual, não compreendendo que é na alteridade, na relação com os outros que nos constituímos como sujeitos no/do mundo. Além disso, é preciso entender que estas relações que compõem os nossos afetos não se dão descoladas da realidade. São sempre contextualizadas, mediatizadas por projetos mais amplos de educação e sociedade, por políticas públicas, por ações em diferentes escalas espaço-temporais que modificam a nossa forma de ser, ver e sentir o mundo e os outros. Modificar os nossos afetos significa, portanto, modificar as nossas relações com o mundo e com o outro e, portanto, se configura como ação coletiva, horizontal, solidária e de profunda responsabilidade.

 

O EXEMPLO DA REFORMA DO ENSINO MÉDIO

Portanto, a partir das análises é possível compreender as diferentes dimensões que compõe a precarização do trabalho nas atuais reformas educacionais postas em prática no Brasil. É importante ressaltar que as análises apresentadas nos documentos vão na direção contrária daquelas apresentadas no 1º Relatório de Acompanhamento do Plano Nacional de Educação, publicado em novembro de 2016, tanto no que se refere à questão dos investimentos, quanto à questão da demanda por educação pública. Talvez o dado mais preocupante, com o qual nenhum destes documentos dialoga, é o fato de que existam 1.650.602 jovens de 15 a 17 anos que ainda não são atendidos no ensino médio, conforme o relatório (INEP, 2016). Em uma política educacional comprometida como a garantia do direito da educação para todos, a constatação desta realidade seria motivo para a construção de mecanismos de ampliação dos investimentos para que todos os sujeitos pudessem ser plenamente atendidos em suas demandas. No entanto, quando o foco é construir uma política educacional que garanta as condições de reprodução de privilégios, a precarização das condições educativas já insuficientes se torna uma meta, como é demonstrado em todos os documentos analisados.

Portanto, é evidente a necessidade de ampliação dos investimentos para dotar as escolas públicas brasileiras das condições materiais e profissionais essenciais para o desenvolvimento da prática educativa. É nesta perspectiva que se baseiam os estudos que defendem a ampliação do investimento público em educação pública para 10% do PIB até 2024 e que sustentam a necessidade de regulamentar o Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi), amplos dispositivos presentes no atual Plano Nacional de Educação. E esta análise da falta de recursos para a educação pública brasileira está também presente no relatório de acompanhamento das Metas do PNE. Ao avaliar a meta 20 do plano, que se refere a ampliação dos investimentos públicos em educação até alcançar o patamar de 10% do PIB em 2024, o relatório aponta que ainda estamos distantes deste índice. Em 2014, o investimento público direto atingiu 5% do PIB (6% se levarmos em consideração o investimento total em educação, o  que incorpora os recursos públicos repassados para a iniciativa privada). Além disso, o relatório aponta para uma estabilização da curva de crescimento, que vinha em elevação desde 2004, saindo do patamar de 3,8% naquele referido ano até alcançar os valores atuais.


Analisando o total de recursos investidos no ensino médio (R$ 64.510.000.000 em 2014) e dividindo este montante pelo total de  matrículas nesta etapa da educação básica na rede pública (6.427.370), chegamos ao valor de R$10.036 por aluno/ano ou R$836 por aluno/mês, muito abaixo das mensalidades cobradas pelos principais colégios privados do país e cerca de um terço da média dos países da OCDE, segundo o já citado relatório Education at a Glance (2016). Esta situação fica ainda pior quando somamos ao total de alunos matriculados aquele montante de 1.650.602 jovens de 15 a 17 anos que ainda não são atendidos no ensino médio. Se houvesse o atendimento a todos estes estudantes, sem elevação dos recursos, o investimento anual por aluno cairia para R$7985 ou R$665 por aluno/mês. É preciso ressaltar que, com estes valores atuais de investimento, as diferentes redes de ensino público atendem apenas 6,5% das matrículas em ensino integral. Trata-se, portanto, de dados que nos revelam o longo percurso que temos até a efetiva universalização do Ensino Médio.

E aqui vai se delineando de forma cada vez mais evidente a hipocrisia e  o cinismo presente nos documentos que sustentam este novo ciclo de reformas educacionais no Brasil. Tal cinismo se escancara quando analisamos com maior detalhe a atual reforma do Ensino Médio brasileiro, disposto na lei 13415 de 16 de fevereiro de 2017. Segundo os dados disponíveis no próprio site do MEC, o governo propõe ampliar o acesso ao ensino médio, com ênfase no ensino em tempo integral, investindo R$166 a mais por mês e por aluno. Para entender o que este “montante” de recursos significa, um cálculo pode nos ajudar. Imaginemos que estes alunos e alunas que passarão o dia inteiro na escola necessitem fazer mais uma refeição entre os turnos, o que nos parece bastante razoável. Imaginemos também que todo este recurso a mais, investido pelo governo, será destinado totalmente para o custeio desta refeição. Se levarmos em consideração o total de 20 dias letivos em um mês, cada refeição feita pelos alunos e alunas não poderá custar mais do que R$8,30. No limite, o que tal recurso anunciado pelo governo significa é somente uma refeição malfeita entre dois turnos de uma escola precária.

A compreensão da reforma nos possibilita entender o movimento de luta desencadeado pelos estudantes das escolas técnicas estaduais de São Paulo em 2016, que ficou conhecida como “a luta pela merenda”. Este modelo que sustenta a atual reforma do ensino médio, baseada na expansão com contenção de investimentos, vem sendo posta em prática desde 2014 na rede de escolas técnicas de São Paulo, resultando em mudanças curriculares, com o aumento de vagas nos cursos de Ensino Médio Integrado (ETIM). Nesta modalidade de ensino, os estudantes ficam o dia inteiro na escola. No entanto, apesar da ampliação da permanência dos estudantes, não foi previsto pelo projeto da rede estadual recursos para a garantia de, pelo menos, uma refeição aos estudantes. O absurdo desta situação levou milhares de estudantes paulistas a desencadearem um movimento que resultou na ocupação de centenas de escolas da rede técnica, bem como do Centro Paulo Souza, autarquia vinculada à Secretaria de Ciência e Tecnologia do Governo Estadual. Após o movimento, os estudantes conseguiram a garantia de pelo menos uma refeição entre os períodos.

Por isso, a análise dos números apresentados pelo Governo Federal em relação à Reforma do Ensino Médio e o diálogo com o processo que tem ocorrido nas redes de escolas técnicas de São Paulo nos possibilita compreender as reais intencionalidades que ocultam por trás do discurso em defesa do  direito de escolha do estudante, tão aludido nas propagandas milionárias difundidas pelo Ministério da Educação. Em certa medida, a Reforma do Ensino Médio, assim como inúmeras outras políticas educacionais contemporâneas, constroem as condições legais para ampliar os mecanismos e as modalidades de privatização da escola pública que vêm sendo postas em prática no país há algumas décadas e são amplamente defendidas nos documentos aqui analisados.

Novamente, tais mecanismos aparecem expressos na reforma do Ensino Médio. Uma das principais medidas apresentadas pelo governo como a principal ação da reforma se refere à ampliação da carga horária anual das atuais 800 horas para 1400 horas em 2022, com uma elevação para 1000 horas anuais já em 2017. No entanto, em nenhum momento do texto está explicito que a realização destas horas se dará com a ampliação das atividades na escola formal. Ao contrário, em dois momentos, pelo menos, (trata-se do artigo 4º da lei, que altera os artigos 36 da LBD, em especial os parágrafos 6 e 11) o texto deixa claro que tais horas poderão ser computadas, considerando-se as atividades desenvolvidas pelos estudantes em outros contextos, com especial destaque para a vinculação ao setor produtivo. Além disso, o texto aponta que para atingir o total de horas definidas na reforma, os sistemas de ensino poderão estabelecer parcerias e convênios com instituições que atuem com educação a distância.

Esta lógica de ampliar carga horária a partir de parcerias com instituições privadas e com o setor empresarial parece estar muito bem desenhada no Médio Tec., programa anunciado em março de 2017 pelo Ministério da Educação e que propõe oferecer 82 mil vagas em cursos técnicos, ao custo de 700 milhões de reais por ano. É importante sublinhar que cada vaga neste programa custará ao Governo Federal R$8536 ano/ aluno, ou R$711 aluno/mês, valor muito próximo ao aplicado atualmente para manter o ensino médio brasileiro. Há alguma coisa muito errada nesta conta, ainda mais se nos perguntarmos como serão oferecidas estas vagas? Resultarão da ampliação das matrículas nos Institutos Federais (IFs), que já oferecem cursos técnicos e profissionais reconhecidamente de qualidade, possuindo uma rede de escola distribuída pelos diferentes estados do território brasileiro? Ou serão compradas de instituições privadas, que oferecem cursos profissionais supostamente baratos, de qualidade duvidosa, na modalidade à distância? Afinal, esta primeira medida de regulamentação da Reforma do Ensino Médio revelará, enfim, a essência deste processo, qual seja, a ampliação dos mecanismos de privatização da educação pública brasileira?

Por isso, é fundamental que acompanhemos o lançamento do Médio Tec e sua execução, uma vez que, por se tratar de uma política de incentivo à implementação do Ensino Médio Integral, que pressupõe o repasse financeiro do Governo Federal aos Estados e municípios que adotarem as medidas propostas na reforma, as ações feitas pelo MEC nos próximos meses deixarão claro o direcionamento para a execução da Reforma do Ensino Médio e suas reais intenções. Se de fato a intenção do MEC, como expresso na intensiva propaganda em rádio, televisão, internet e nas portas das escolas, é ampliar a autonomia dos estudantes em relação à escolha dos seus percursos formativos no Ensino Médio, é preciso que façamos alguns questionamentos: será que, concomitante ao lançamento do Médio Tec., teremos uma política de construção, reforma e ampliação dos laboratórios de ciências, com o intuito de garantir que todos os estudantes possam optar pelo percurso formativo em Ciências da Natureza? Teremos um amplo programa de implantação, reforma e ampliação das bibliotecas escolares, fundamental para todos os percursos formativos, em especial, de ciências humanas e sociais aplicadas? Será lançado um programa de formação continuada docente, com o intuito de discutir  o novo currículo do ensino médio e suas implicações didáticas? E de valorização salarial e de carreira? Teremos uma política de busca ativa destes milhões de estudantes ainda fora do ensino médio, complementada por ações de permanência que evitem a evasão dos mesmos? A forma como o Governo atual responderá, através de políticas públicas a estas questões, revelará o tamanho da hipocrisia que está na base da reforma do ensino médio.


No entendimento desta hipocrisia, outra questão nos parece fundamental: como ampliar o Ensino Médio, garantindo acesso e  permanência a todos, possibilitando a real liberdade de escolha do percurso formativo, sem abdicar de uma formação integral e articulada em diferentes áreas, conhecimentos, conteúdos e linguagens, com a aprovação da Emenda Constitucional que limita a elevação dos gastos públicos à inflação do ano anterior? Com a emenda, trata-se, no limite, de manter o Estado do tamanho que está, mesmo que tenhamos ainda um aumento demográfico e, consequentemente, de demanda por serviços públicos. No caso do Ensino Médio, a aprovação da PEC do teto dos gastos irá significar que, àqueles 1.650.000, se somarão milhares de outros jovens, expulsos de um sistema educacional que insiste, desde a sua origem, a ser lugar da reprodução de privilégios e da hipocrisia expressa em discursos e leis que só servem aos interesses daqueles que, há séculos, lapidam o país, produzindo miséria e morte.

Portanto, a cada nova medida tomada pelo Ministério da Educação vai se comprovando a hipótese que já defendemos em outros textos e artigos de que o principal objetivo do novo ciclo de reformas educacionais que têm sido postas em prática no Brasil no momento atual é diminuir os custos da educação no país, demonstrando o cumprimento da agenda apresentada pelo Banco Mundial em 2010. Neste sentido, é preciso compreender tais políticas como mais um momento da ampla disputa pelo orçamento público que hoje se desenvolve de forma mais intensa no Brasil. Na lógica dos administradores da dívida pública, daqueles que lucram com os exorbitantes juros, importam políticas educacionais que transfiram recursos públicos para a iniciativa privada, seja através da compra de sistemas apostilados, cursos à distância, pagamento de bolsas em colégios particulares, modelos de gestão compartilhada. Além disso, interessa reduzir o peso do salário docente, a maior categoria do serviço público no Brasil, sobre os orçamentos da União, dos Estados e Municípios, ampliando a margem de recursos para o pagamento dos juros da dividida. Por isso não é de se estranhar que apareçam, a cada momento, novas propostas de terceirização e contratação precária de docentes, com a entrega da gestão das escolas às Organizações da Sociedade Civil. Por fim, interessa, profundamente, a diminuição do custo da mão-de-obra no país. Para isso, é fundamental inundar o mercado de profissionais com diplomas de nível médio, preparados para o trabalho precarizado em um contexto de 14% de desemprego.

Somadas às reformas da previdência e trabalhista, as reformas educacionais são, neste sentido, mais um momento da disputa entre capital e trabalho no país. Com isso, é evidente que não há, por parte dos elaboradores das mesmas, uma sincera preocupação em melhorar a qualidade da educação básica, possibilitando aos jovens uma formação que lhes permitam compreender o mundo através da apropriação de conceitos, conteúdos, linguagens, técnicas e procedimentos de diferentes áreas do conhecimento. Ao contrário, seus principais objetivos consistem em atuar a serviço dos grandes organismos internacionais que vêm na educação pública mediação necessária para disputar os orçamentos públicos e, no limite, os projetos de Estado e sociedade. Por onde passaram, tais reformadores produziram uma escola pública cada vez mais desigual, como pode ser percebido no caso sintomático da rede estadual de São Paulo que há mais de 20 anos é organizada a partir desta perspectiva e que, como mostramos no início deste texto, só nos últimos 10 anos perdeu 2 milhões de alunos e, nos últimos dois, 40 mil professores. Pelo trabalho bem feito na rede estadual paulista, tais reformadores, como dissemos, foram alçados aos principais cargos de decisão da política educacional brasileira.

 


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste sentido, ao compreender os sujeitos e as intencionalidades presentes no atual ciclo de reformas educacionais no Brasil, verificando a intensa disputa pelo orçamento público que está em sua base, colocamo-nos o desafio de construir a luta em torno de um outro projeto de educação, que  tenha com princípio a defesa de um sistema nacional de educação, equitativo, gratuito e de qualidade socialmente referenciada. Pensamos que as bases para a construção deste sistema foram lançadas com o Plano Nacional de Educação e por isso a necessidade de defendê-lo, para que suas metas sejam plenamente cumpridas, em especial no que se refere à ampliação dos investimentos  públicos em educação pública. Lutar pelo PNE, em nossa perspectiva, significa resistir ao projeto de Estado e sociedade que está presente na Emenda Constitucional que limita os Investimentos Públicos, na reforma do Ensino Médio e em tanto outras medidas que tem como único objetivo ampliar a desigualdade de condições e oportunidades que marca a história deste país.

Além disso, em outra escala da luta, é preciso entender a escola e a sala de aula como territórios de disputa e de construção deste outro projeto de educação, mais horizontal, inclusivo, colaborativo. É preciso se contrapor à tentativa de reduzir a complexidade do trabalho docente apenas à sua dimensão técnica. O reconhecimento do trabalho docente como complexo, articulador da teoria e da prática, da ação e da reflexão, pressupõe lutar por processos formativos iniciais e continuados que garantam aos docentes as condições teóricas e objetivas para refletirem sobre o que fazem cotidianamente, entendendo as diferentes mediações necessárias para o desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem. Para isso, é preciso relembrar o que disse Paulo Freire na Carta aos Professores: o primeiro compromisso ético-político docente é estudar. A luta pela autonomia docente frente às inúmeras tentativas de controle sobre o seu trabalho, seja através dos currículos prescritivos, seja por meio     das     avaliações padronizadas pressupõe o exercício  da responsabilidade sobre a sua formação e a luta pela garantia das condições de investimento público para que a mesma ocorra de forma constante e cotidiana.

Reconhecer a sala de aula como lugar de confronto e de construção de outras narrativas, de disputa do senso comum, é uma das estratégias fundamentais para potencializar a nossa luta em defesa de um outro projeto de educação, contrário à lógica dos reformadores expressa nos documentos aqui analisados. Aos educadores, sempre deve interessar aquilo que acontece na sala de aula, pois há ali muita potência em forma de desejo, há muita angústia e espaço de construção coletiva, há muito conflito e possibilidade de reelaboração. Se de fato, a sala de aula não comportasse todo este potencial, não sofreria, a todo momento, tentativas de intervenção, seja através do “manejo tecnocrático”, seja pelos discursos autoritários, como o do movimento Escola Sem Partido. Disputar a sala de aula, preenchendo-a com os nossos corpos, discursos e afetos é ação simultânea a ocupação das ruas, das praças, neste movimento que leva a escola para a rua e a rua para a escola.

Portanto, a aprovação da MP do Ensino Médio não pode significar a derrota de nossa constante defesa de uma escola pública efetivamente democrática, no acesso, na permanência, na construção de sentidos, significados, conhecimentos. Frente à hipocrisia das palavras, resta-nos a coragem da luta! E esta coragem nos faz seguir sempre.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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                             (2011). Uma ideia de pesquisa educacional. São Paulo: Edusp. Banco Mundial (1994). La enseñanza superior. Washington: Banco Mundial. Decreto nº6094 de 24  de  abril  de  2007 (2007). Dispõe  sobre  a  implementação do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, pela União Federal, em regime de colaboração com Municípios, Distrito Federal e Estados, e a  participação  das  famílias  e  da  comunidade,  mediante  programas  e ações de assistência técnica e financeira, visando a mobilização social pela melhoria da qualidade da educação básica. Brasília: DF.

Lei nº 11.738 de 16 de julho de 2008. (2008) Regulamenta a alínea “e” do inciso III do caput do art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica. Brasília: DF.

Lei nº 13415 de 16 de fevereiro de 2017 (2017) Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e o Decreto-Lei no 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei no 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Brasília: DF.

Bruns, B. & Luque, J. (2014). Professores excelentes: Como melhorar a aprendizagem dos estudantes na América Latina e no Caribe. Washington: World Bank.

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Gordon, R.; Kane T.; Staiger, D. (2006) Identifying effective teachers using performance on the job. Washington: The Brookings Institution.

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[1] Um dos exemplos do papel destes grupos se refere à aprovação do Decreto 6094, de 24 de abril de 2007, que dispõe sobre o Plano de Metas do Compromisso Todos pela Educação. Tal decreto carrega o nome de um dos principais grupos, com ampla participação empresarial, que tem pautado o debate educacional no Brasil na última década. Tal grupo teve participação direta na aprovação deste decreto que, entre outras coisas, estabelece que a qualidade da educação será aferida a partir do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), calculado e divulgado periodicamente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), a partir dos dados sobre rendimento escolar, combinados com o desempenho dos alunos, constantes do censo escolar e do Sistema de Avaliação da Educação Básica - SAEB, composto pela Avaliação Nacional da Educação Básica - ANEB e a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (Prova Brasil).

[2] Sancionada em 16 de julho de 2008, a lei 11738 institui o piso salarial profissional para os profissionais do magistério público da educação básica. Resultado da pressão dos sindicatos docentes, a lei estabelece uma política de reajuste salarial com vistas a equiparar, em médio prazo, o salário docente com os de outros profissionais com o mesmo tempo de escolaridade. Desde que entregou em vigor, o piso salarial docente aumento 142%, chegando, em 2017, ao valor de R$2298,80 para uma jornada de 40 horas semanais.

[3] Esta ampliação das parceiras com o setor privado tem se materializado, no caso do Ensino Médio, em programas como o Médio Tec., anunciado em março de 2017 pelo Ministério da Educação e que propõe oferecer 82 mil vagas em cursos técnicos, ao custo de 700 milhões de reais por ano, em projeto que retoma os princípios do Pronatec, que significou o repasse de um montante de recursos públicos para a iniciativa privada, para o oferecimento de cursos técnicos de qualidade bastante duvidosa.