Paulo Freire. Revista de Pedagogía Crítica

Año 15, N° 17 Enero – Junio 2017

ISSN 0717 9065      ISSN ON LINE 0719 – 8019

pp. 173 - 195

 

 

 

El proceso de humanización en Paulo Freire y el incómodo filosófico

 

Process in humanization Paulo Freire philosophical annoyance

 

O processo de humanização em Paulo Freire e o incômodo filosófico

 

Jorge Alves de Oliveira*

Resumen

En el contexto actual es necesario resignificar lo humano, pues son varios los atentados contra él y, sobre todo su atenuación en favor de un proyecto político y económico que tiene como centro la producción, el consumo y la ganancia. La formación escolar, que desea ser pública, por medio del ‘incómodo filosófico’, puede contribuir con elementos importantes para que se identifique la ‘lógica del consumo’, vigente en este momento como una ‘ilógica’ que exactamente cosifica el conocimiento, instrumentalizándolo a favor de la producción y de las estrategias de marketing. Al mismo tiempo en que la persona solamente es considerada cuando contribuye efectivamente con su conocimiento, con su fuerza de trabajo para la producción, con su condición concreta de consumidor de los productos. Revisitar a Paulo Freire en la perspectiva de lo humano es identificar las nuevas situaciones de opresión que se imponen a las personas incluso en el ambiente escolar, que por muchas razones hacen referencia a la ‘ilógica del consumo’. Es hacer nuevamente una apuesta a favor de lo humano contribuyendo para que la concretización del bienestar esté vinculada a la práctica de la justicia y la defensa de la dignidad lo que exige la existencia de personas emancipadas.

 

Palabras clave: emancipación, incómodo filosófico, educación pública, humanización.

 


*  Universidade Nove de Julho Sao Paulo, Brasil; e-mail: jorafro@gmail.com Fecha de Recepción: 30 noviembre 2016

Fecha de Aceptación: 14 marzo 2017

 

Abstract

In the current context it is necessary to re-signify the human, since there are several attempts against it and, above all, a desired mitigation in favor of a political and economic project centered on production, consumption and profit. School education, which is publicly desired, through the "philosophical nuisance", can contribute with important elements to identify the "logic of consumption" now in force as an "illogical" precisely because the knowledge is instrumented in favor of it Production and marketing strategies with a view to sales. At the same time that the person is only considered when he effectively contributes with his knowledge, with his work force for the production, with his concrete condition of consumer of the products. Revisiting Paulo Freire in the perspective of the human is to identify the new situations of oppression that are imposed on the person even in the school environment that for many reasons refers to the "illogical of consumption." It is once again to make a bet in favor of the human contributing to the achievement of well-being is linked to the practice of justice and the defense of dignity which calls for the existence of emancipated people.

 

Keywords: emancipation, philosophical nuisance, public education, humanization.

 

 

Resumo

No contexto atual é preciso ressignificar o humano, pois são vários os atentados contra ele e, sobretudo uma mitigação desejada a favor de um projeto político e econômico que tem como centro a produção, o consumo e o lucro. A formação escolar, que se deseja pública, por meio do ‘incômodo filosófico’, pode contribuir com elementos importantes para que se identifique a “lógica do consumo” ora vigente como sendo uma “ilógica” exatamente por coisificar o conhecimento instrumentalizando-o a favor da produção e das estratégias de marketing objetivando as venda. Ao mesmo tempo em que a pessoa somente é considerada quando contribui efetivamente com o seu conhecimento, com sua força de trabalho para a produção, com a sua condição concreta de consumidor dos produtos. Revisitar Paulo Freire na perspectiva do humano é identificar as novas situações de opressão que se impõe à pessoa até mesmo no ambiente escolar que por inúmeras razões referenda a “ilógica do consumo”. É mais uma vez fazer uma aposta a favor do humano contribuindo para que a concretização do bem-estar esteja vinculada à prática da justiça e a defesa da dignidade o que pede a existência de pessoas emancipadas.

 

Palavras-chave: emancipação, incômodo filosófico, educação pública, humanização.

 

 

O ‘INCÔMODO FILOSÓFICO’ FRENTE ÀS DEMANDAS DE UMA EDUCAÇÃO HUMANIZADORA

Este texto começa explicitando o que se deve entender por ‘incômodo filosófico’. Este é a atitude daquele que mesmo incomodado frente às inúmeras situações de mal-estar as enfrenta (ou as promove) de tal forma que vai se construindo novas significações para a sua existência e a dos demais. Uma atitude que se efetiva no “exercício da fala”, pois esta ‘fala’ é direito de todos e é exercida objetivando lapidar um conceito ou uma ação que em suma auxilia na leitura de mundo e na sua transformação. Nesse “exercício da fala” é fundamental que os interlocutores possam se apoiar em referências que de consistência e fortaleça suas argumentações e neste sentido o “repertório filosófico” se apresenta como contribuição importante para o que se pretende em termos de ressignificação da existência. O “incômodo filosófico” fazendo-se presente no espaço escolar pode ser uma grande contribuição para os adultos – profissionais da educação e comunidade escolar –, bem como para os estudantes, pois os incômodos se fazem presentes na educação escolar, mas nem sempre são enfrentados a contento em favor de um pseudo apaziguamento.

O quadro geral, que envolve e afeta adultos e novos crianças, adolescentes e jovens – frequentadores do espaço escolar é composto  entre outros por constantes eventos que atentam contra a integridade física e moral de homens e de mulheres por meio de ações terroristas; outros afetados por crises políticas e econômicas internas, mas originadas por interesses externos onde as pessoas se veem obrigadas a deixarem suas terras morrendo no mar ou formando uma massa sem forma de refugiados; o número sempre crescente de morte violenta que afeta a população jovem negra brasileira; somados aos discursos inflamados direcionados contra os Direitos Humanos[1], tais como: a defesa xenofóbica dos direitos adquiridos negando-os aos demais opondo assim a classe média e os emergentes, os países desenvolvidos frente aos que estão em ascensão; o movimento firme e concreto de volta para o interno dos países colocando em xeque os princípios e o projeto da globalização; tudo isto obrigando a todos a fazer uma  reflexão atenta sobre: qual é a ideia que se tem do humano nestes tempos pautados pelas orientações neoliberais?

O breve quadro exposto, bem como a questão que o acompanha não é  um dado pontual, nem se encerram às regiões específicas. As conquistas tecnológicas, em especial as mídias eletrônicas, proporcionam entre outras uma conexão interplanetária que transforma as particularidades em temas globais, para o bem ou para o mal. Mais. Muito diferente de serem temas midiáticos, eles se referem às pessoas e, como um senso de humano[2] que conecta a muitos é exigido destes uma formulação, um posicionamento. Em poucas palavras: aquelas questões globais[3] aterrissam no cotidiano das pessoas onde a integridade física, moral, também, é colocada em risco e, no afã da preservação de si, o desejo pela ordem eclipsa os direitos que são de todos, enquanto, direitos de humanos. Neste instante é imperativo que a reflexão auxilie no discernimento a favor da melhor ação se tomar.

O que se apresenta, portanto não pode passar ao largo da educação escolar, que se deseja pública. Entenda-se por ‘educação escolar, pública’ aquela que possibilita ao estudante o acesso à instituição do ensino, a sua permanência até o final do curso, a apropriação do conhecimento ofertado e construído que o auxilie na própria emancipação e na de seus pares, promovendo ações contrárias às injustiças que ferem diretamente a dignidade de toda e qualquer pessoa. Tal entendimento se aplica à unidade escolar pública, estatal, bem como, à unidade escolar privada ou outras formatações de educação dos novos – crianças, adolescentes e jovens, bem como dos adultos.

Nesse recorte que se faz esses novos se apresentam como alunos em busca do conhecimento acreditando que com tal aquisição serão inseridos na sociedade dos adultos e serão bem sucedidos no mercado de trabalho. A cada aula, em cada evento mais volumoso este discurso se faz presente e, de certa forma é eco daquilo que os adultos – pais ou responsáveis – lhes disseram ao longo da criação familiar. Neste contexto é fácil identificar que a escola é a grande referência da comunidade como meio de ascensão social. Ao mesmo tempo estes novos trazem consigo o celular (símbolo maior da tecnologia possível desta comunidade) que possibilita o acesso à rede de computadores que por sua vez os colocam numa dimensão universal. Do seu restrito local específico aquele aluno está conectado a uma rede que lhe traz infinitas formulações sobre a existência humana e suas relações. Um instrumento que lhe possibilita e lhe demanda posicionamentos desde os mais simples como “curtir”, “compartilhar”, enviar “emoji” até os grandes debates que dizem respeito ao seu futuro imediato e de seu grupo. Em tais condições para estes alunos reforça a ideia do direito à manifestação de opinião e acreditam que estão exercendo o direito de liberdade de expressão, uma participação efetiva  na sociedade. Tudo isso dentro de uma visão própria a partir do senso de que tudo está a favor dele, a seu serviço, inclusive o tempo, pois estudar, aprender se apresenta dentro da sua disposição de querer, de desejar. Uma postura privada frente a algo e às questões de ordem pública. Enfim, é com estes novos que trazem este perfil que a escola se compõe e os adultos, profissionais da educação, atuam delineando um posicionamento frente aos novos e ao mundo.

Considere-se, assim que a educação escolar, conduzida pelos adultos intencionalmente, atua sobre os novos, mas em Freire atua também sobre os adultos que se encontram ainda à margem da sociedade objetivando que eles possam se inserir no mundo cultural da humanidade e ali desenvolvam as suas potencialidades a fim de que com isto assumam e construam o seu próprio mundo tal como formulou Arendt (2003):

A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa  de renovar um mundo comum (p. 247).


De outra forma: a educação escolar, pública, atua sobre os novos contribuindo na formação de outros humanos e, não na reprodução dos humanos que aqui estão. A aposta de Arendt é que uma educação assim oportuniza ter esperança de que o novo surja pautado em novas relações advindas de novas significações construídas entre estes educandos. Cabe aos adultos oferecerem aquilo que têm o que produziram, mas abrindo espaços para o surgimento de novidades que são surpreendentes para todos. A questão que se coloca, portanto, é esta: que humano se deseja encontrar no final do processo escolar, público? Para tanto, é preciso que tais questões sejam familiares e presentes no cotidiano dos adultos envolvidos com a educação escolar. Cabe a eles a decisão pelo currículo a ser estudado, pela metodologia de ensino, pela ação pedagógica a ser desenvolvida, em especial, na sala de aula. Não fazê-lo contribui, significativamente, para que os novos fiquem expostos e condicionados a uma só via, retirando dos mesmos a inventividade e a criatividade, negando, em suma, o caráter público da educação escolar.

Este texto, portanto, procurará defender a proposta de que os profissionais da educação escolar, lançando mão do ‘incômodo filosófico’, devem revisitar e auxiliar na ressignificação do entendimento sobre o humano a fim de que, com mais propriedade, eles e, os novos, possam referendar ou não o humano que se apresenta neste momento histórico onde o neoliberalismo pauta as relações e tudo o que o cerca, marcando assim uma posição efetiva e concreta frente ao trabalho pedagógico que realizam. A obra “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire (1987), traz uma concepção de humano como alguém inacabado, mas ao mesmo tempo um ser que se ‘faz’ (p. 30). É com tal concepção que este texto se volta sobre a educação escolar, pública, acreditando que nela e, com ela, os educadores, os educandos e, todos aqueles que direta ou indiretamente, são afetados pela unidade escolar, vão ressignificando o senso de humano e, com isto vão, mutualmente, constituindo-se humanos. Omitir-se desta tarefa ou impedir que os novos a realizem é desumanizá-los estabelecendo assim uma outra situação de opressão. O desafio que se  apresenta é o de identificar o ‘canto das sereias’ do neoliberalismo que para muitos acena para a ordem e a segurança – centradas na personificação da liderança e na supressão dos direitos fundamentais – em detrimento da capacidade deste humano de se reconstruir por meio da palavra que ressignifica e emancipa.

É, portanto, objetivo deste texto: recolocar a questão do humano como centro das preocupações dos profissionais da educação enfrentando ou promovendo os incômodos que cercam essa temática por meio do ‘incômodo filosófico’ aquele que promove a fala que busca ressignificar conceitos e ações lançando mão do repertório filosófico. Para tanto, retoma-se as formulações de Paulo Freire sobre o humano e o processo de humanização, abordando a questão, de forma pedagógica, motivado pelo ‘incômodo filosófico’.

 

O que se entende por neoliberalismo e seus lastros

Para uma melhor compreensão do texto e, facilitação na escrita, se faz necessário, de pronto, apresentar uma ideia sobre o que se entende por neoliberalismo e, assim, dizer algo a respeito de seus lastros em meio à sociedade e, de forma particular, no espaço escolar, que se quer público. Para tanto, fez-se a opção por dois autores que tratam da temática e a aproxima da educação: Silva (1999) e Apple (1999).

A contribuição de Apple (1999) é esta: “A visão do neoliberalismo é a de um Estado fraco. Uma sociedade que deixa a “mão invisível” do livre mercado guiar todos os aspectos de suas formas de intenção social é vista ao mesmo tempo como eficiente e democrática.” (p. 185) O que Apple traz faz parte do clássico entendimento de que é o próprio “mercado” aquele que regula as relações de produção e de consumo, ou seja, ele próprio. E, é este “mercado” que faz o seguinte apontamento: dentro da lei estabelecida, todos podem a seu bel prazer desenvolver ações que lhes possibilitem a sua sobrevivência e a dos seus. Por sobrevivência para além daquilo que é vital entenda-se: seu bem-estar concretizado na posse de bens e no acúmulo de capital. Nesta configuração, o tripé produção-consumo-lucro capitania as demais ações, especialmente, aquelas relacionadas ao mundo do trabalho e ao mundo do conhecimento  sendo que este último está subordinado ao primeiro: conhecer para produzir. Torna-se, assim encantador, tal como “o canto das sereias” para a própria pessoa considerar que ela, lançando mão de suas habilidades e de suas escolhas, possa dedicar-se na construção de sua vida sem ter os imperativos do Estado, apoiando-se assim em uma formulação discutível de democracia. A advertência é esta: O mercado livre, o enriquecimento pessoal, o sucesso financeiro e a ascensão pessoal advindo das iniciativas próprias não podem impor-se frente às situações de injustiças e de indignidade que o Estado deve combater. A democracia é direito de todos, mas tem seu mérito exatamente no esforço contínuo de tratar as questões públicas diminuindo os efeitos maléficos do fosso econômico-social advindo da própria lei do mercado. Chauí (2002) ao fazer sua explanação sobre a democracia a apresenta entre outras como aquela que “institui direitos” (p. 225) e explica que estes são perseguidos exatamente porque as regulamentações jurídicas formais não são capazes de garantir por si mesmas a igualdade e a liberdade das pessoas. Diz a autora:

As ideias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação jurídica formal. Significam que os cidadãos são sujeitos de direitos e que, onde tais direitos não existam nem estejam garantidos, tem-se o direito de lutar por eles e exigi-los. É esse o cerne da democracia. (Chauí, p. 224)

 

 

Note-se que não se trata de dizer da democracia como algo fechado, estático, acabado. A leitura de Chauí aponta para a democracia como algo em constante construção, pois aquilo que está formalizado pode não satisfazer a contento as demandas que surgem no contexto desafiando assim a todos a buscarem novas formulações. Neste sentido ser democrático é colocar-se na posição de contínua atenção para verificar se o que está posto promove ou não as pessoas buscando assim ações efetivas de superação das injustiças. Tal postura choca-se frontalmente com aquele encanto que só faz aumentar na junção entre o mundo do trabalho, de onde vem o produto a ser consumido e transformado em lucro, com a autoconsciência, mesmo não verbalizada que revela o potencial criador que há em si mesmo enquanto aquele que transforma a natureza e o meio em que vive segundo as suas necessidades. É possível compreender, assim, porque nenhuma voz externa à lógica do mercado sobressai, pois, sempre esta voz, ainda que seja a do Estado, soará como um aprisionamento da iniciativa e da potencialidade da pessoa, consequentemente, um atentado, um enfraquecimento do ideário democrático e da ideia de eficiência tão caro ao pensamento neoliberal.

No espaço escolar é possível identificar como este encanto se faz presente nos estudantes. Tal como herdaram de seus pais ou, dos seus responsáveis, eles reproduzem os encaminhamentos projetando suas vidas pautadas no bom emprego e na certeza de que irão possuir muitos bens e, com isto terão garantido o bem-estar prometido pela ‘(i) lógica do mercado’. E, o que é esta ‘(i) lógica? É de forma direta o paradoxo humano da produção e do bem-estar. É possível compreender a lógica que apresenta a pessoa como criativa a ponto de se valer de sua inteligência e apropriando-se dos bens materiais transforma-los segundo sua necessidade ou simples prazer. Acrescente-se também que a produção excedente possa ser comercializada e com isto obter algum ganho, o lucro que possibilitará a produção de novos produtos e com isto novos ganhos. Mas, contudo é ilógico que nesta relação produção-ganho-bem-estar a própria pessoa se coisifique e passe ser refém do processo que criou. A sua inventividade e a sua força de trabalho deixam de promover o bem-estar e se transformam em agonia. O discurso escolar e muitas práticas pedagógicas corroboram com aquela ‘(i) lógica para justificar o empenho e a adesão nas atividades que propõe aos educandos. Tudo isto dificulta a visualização de que o trabalho tal como está posto pede técnica e esta está voltada para a produção que visa consumo e o lucro, robotizando e limitando a pessoa a uma  só performance. A mesma dificuldade de perceber que o conhecimento, agora restrito à produção de tecnologia, limita a razão focando-a à produção e à acumulação de capital, longe de ser aquela com a qual se pensa e se ressignifica a existência. A partir do quadro exposto tem-se o seguinte entendimento: há um éthos onde o consumo passa a ser a base para a produção dando, assim, o ritmo para o mundo do trabalho. Acrescente-se aqui o papel do conhecimento. Ele se prestará para fomentar o ideário de bem-estar e o desejo de consumo, bem como, oferecerá, as técnicas (o saber fazer) e as tecnologias (a ideias a ser desenvolvida) para um melhor desempenho da atividade produtiva.

Assim, é possível compreender o que disse Silva (1999) a respeito dos desafios que se tem frente ao pensamento neoliberal: “O que está em jogo não é apenas uma reestruturação neoliberal das esferas econômica, social e política, mas uma reelaboração e redefinição das próprias formas de representação e significação social” (p. 13). O que se destaca na formulação do autor são as expressões ‘redefinição das formas de representação’, ‘significação social’, todas elas associadas à ideia de ressignificação da proposta e da efetivação do pensamento neoliberal. Ainda que se viva dentro desta ‘(i) lógica do consumo’, é possível e necessário, revisitar as bases do neoliberalismo para significá-lo dentro do novo contexto que se vive. É a isto que se refere o novo éthos mencionado anteriormente. O neoliberalismo, entre outros, se apresenta como um novo jeito de ser, de interpretar e de agir no meio histórico em que se vive em todas as relações. A pessoa (biológica) é a mesma, o trabalho (atividade sobre o meio) é o mesmo, o produto, também, o é, as formas de aquisição do produto (troca entre quem tem o produto e quem o deseja) se mantem, contudo, o significado de todos e das relações são específicas de um modelo que se quer hegemônico. Tomando como referência a crítica da Escola de Frankfurt esta pessoa é peça na engrenagem e na engenhosa máquina consumo-produto- trabalho. Peça, porque o uso da sua razão, da sua capacidade de pensar se restringe a criar novos produtos, novas técnicas de produção, novos apelos para que ele e seus pares venham a consumir mais. É aquilo que Horkheimer (1975) chamou de “razão instrumental” (p. 116) onde a pessoa não consegue pensar em si mesmo, fora da máquina da qual lhe consome.

Silva (1999) dirá que:

 

O projeto neoconservador e neoliberal envolve, centralmente, a criação de um espaço em que se torne impossível pensar o econômico, o político e o social fora das categorias que justificam o arranjo social capitalista (p. 13-14).

 

 

De fato, como não se encantar com a ideia de bem-estar advindo da posse de bens produzidos e do lucro/capital advindo da própria ação humana que os possibilitaram à medida das necessidades deste ser histórico? Na mesma linha de raciocínio: como sensibilizar para a reflexão aqueles profissionais da educação, os estudantes e os seus responsáveis que já introjetaram e, participam do entendimento do sucesso pessoal e, portanto, do fracasso, também, pessoal, sem se dar conta do quanto é perverso e excludente o modelo que se apresenta como neoliberal? Não é tarefa fácil problematizar esta compreensão, quanto mais, ainda, demovê-la. Neste sentido, reaparece o desafio já sinalizado:

A presença ofensiva neoliberal precisa ser vista não apenas como uma luta em torno da distribuição de recursos materiais e econômicos (o que ele também é), nem como uma luta entre visões alternativas de sociedade (idem), mas sobretudo como uma luta para criar as próprias categorias, noções e termos através dos quais se pode nomear a sociedade e o mundo (Silva, 1999, p. 16).

 

 

E, como se faz isso? Os apontamentos deste texto sinalizam para a ressignificação que  passa pelo uso livre da palavra ou seja: por  uma educação escolar  que  seja  pública  onde  as  pessoas  lançam  mão  da  palavra buscando aquela que melhor expresse o mundo sendo assim capaz de mobilizar para a justiça e a dignidade.

Nesta perspectiva, não se trata apenas de denunciar as distorções e falsidades do pensamento neoliberal, tarefa de uma crítica tradicional da ideologia (ainda válida e necessária), mas de identificar e tornar visível o processo pelo qual o discurso neoliberal produz e cria uma “realidade” que acaba por tornar impossível pensar e nominar uma outra “realidade” (Silva, 1999, p. 16).

 

 

Destaque para o enfrentamento que se deve fazer para superar o pensamento liberal e construir outras categorias para se ler a realidade. Aqui se apresenta uma ideia de emancipação substancial: ter a atitude criativa e corajosa de buscar pensar a realidade e a existência contra aquilo que está posto como a única possibilidade de leitura. Na construção deste texto este é o desafio/exercício da ressignificação. É a condição efetiva para invalidar a sentença que aponta para a impossibilidade de pensar outra realidade fora do pensamento neoliberal. E mesmo que as tarefas sejam ingratas, cabe aos educadores, em especial, aos que são ligados à filosofia, ao menos considerá-las como sendo suas. De forma explícita, é preciso que se repitam quais são estas tarefas: A primeira. Ressignificar o humano que vive as relações com o outro e o mundo. A segunda. Afirmar que é possível tal pensar a realidade para além do pensamento neoliberal.

Haverá, sem dúvida, o adulto, profissional da educação, coparticipante do pensamento e do éthos neoliberal, até mesmo sendo o seu propagador. De fato, o discurso oficial sobre os escopos da educação escolar se pauta em duas bases: a da formação voltada para a cidadania e para o ingresso no mundo do trabalho. Mas, isto não é empecilho para este profissional da educação atender os reclamos da honestidade intelectual que pede por um pensamento filosófico sobre a educação escolar, pública. Com tal pensamento filosófico é possível problematizar a respeito do significado que se tem sobre o conceito de cidadão, de cidadania, bem como, o de trabalhador e o de mercado de trabalho.


Conceituações que irão revelar se o que se deseja é alguém subserviente e mantenedor do status quo ou se o que se espera é de alguém protagonista capaz de identificar as injustiças e as situações que atentam contra a dignidade da pessoa, promovendo assim ações de emancipação. Em outras palavras é assim a questão que se apresenta: que pessoa se quer no final do processo educacional escolar? O conjunto de educadores, de uma unidade escolar, que se deseja, pública, é obrigado, a considerar a possibilidade de outros arranjos sociais.

 

O incômodo filosófico como novo éthos para ressiginificar o social

Se, anteriormente, foi apontada a existência de um éthos entrelaçado com o pensamento neoliberal, aqui se apresenta outro éthos expresso nos termos de ‘incômodo filosófico’ já apresentado no início deste texto, embora ainda possa ser dito que ele, o ‘incômodo filosófico’ é a atitude de enfrentamento do incômodo que nasce da percepção de que algo não está ajustado nas situações em que se vive. A pessoa que assume o ‘incômodo filosófico’ é pessoa inquieta que transformou ou transforma em problematização os fatos e os dados, possibilitando assim o processo que leva à ressignificação. Neste sentido, o ‘incômodo filosófico’ ganha uma dimensão formativa-educadora, ou seja ele é, também, pedagógico. Incomodar-se ou incomodar o outro pelo simples motivo de causar (identificar) mal-estar ou conviver com situações constantes de incômodo, beira à insanidade. É, contudo diferente a postura de tomar o incômodo para superá-lo e com isso obter outros resultados que promovam apaziguamento. A título de exemplo considere-se como esse outro ‘éthos’ se manifesta.

Ainda que os lastros do pensamento neoliberal alcancem todos os espaços sociais, eles provocam inúmeros mal-estares, exigindo das pessoas outra acomodação. Mesmo objetivando o bem-estar social e, este, na maioria das vezes, sendo confundido com a ideia de posse de bens materiais (o consumo), é audível a procura pelo sentido da existência humana. Tenha-se presente, portanto, uma ‘polifonia de vozes’, uma redundância para que se efetive a contextualização que se faz, sem igual versando sobre todos os temas possíveis e imagináveis. Há em meio a tudo isto um incômodo entre o que  se faz e o que se busca, até porque faltam palavras que codifiquem o que se sente, o que se pensa. Aquele que não se negar a revisitar estas inúmeras vozes terá a oportunidade de ressignificar os conceitos, os valores e os princípios presentes nesse momento histórico. Esta pessoa estará vivenciando o ‘incomodo filosófico’. No universo da filosofia é possível encontrar tal ‘éthos’ na proposta socrática: “Uma vida sem exame não é digna de ser vivida”. (Platão, 1957, p. 73 Em Kant (1985) se lê: ““Sapere audi”! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento” [...] (p. 100). De forma enfática Camus (1989) dirá que é um suicídio não pensar filosoficamente a existência. “Confessar que se foi ultrapassado pela vida ou que não tem como compreende-la” (p. 25). Note-se, portanto, que se trata de um ‘incômodo filosófico’ assumido e conscientemente enfrentado, ou seja, de algo que surge, até do acaso, mas que vai sendo lapidado para que dê, ao seu final, um resultado: o da ressignificação dos conceitos e das ações.

Transportando o que se diz sobre o ‘incômodo filosófico’ para o universo escolar é preciso dizer que aquele está presente e é motor do “incômodo pedagógico”. O raciocínio é paralelo ao já apresentado sobre o cenário social. De fato, a educação escolar é um terreno informe que a cada momento ganha uma nova configuração. Este estado de contínua reconfiguração, por sua vez, é exigente com os personagens – profissionais da educação, estudantes, comunidade em geral – provocando, também, seus mal-estares. Neste sentido os incômodos que surgem precisam ser tratados de em termos pedagógicos possibilitando a ressignificação dos conceitos e ações, bem como contribuindo com a formação de todos.


Resta, por fim, dizer algo sobre o que são e como estes termos – ‘incômodo pedagógico’, ‘fazer pedagógico’, o ‘não, mas pedagógico’ – contribuem com a temática deste texto? Considere-se, portanto, o que segue.  Por mais óbvio que seja, é preciso que se diga que há na escola um ‘fazer pedagógico’ que lhe é própria e é intencional e, que, portanto, objetiva um resultado final. A caracterização a ser feita parte do entendimento de que ela deva disponibilizar o conhecimento construído ao longo da história humana de tal forma que os novos possam se apropriar dele e, assumirem a realidade em que vivem, construindo a partir disto o seu próprio mundo. A escola deve deixar explicita esta sua missão e o seu ‘fazer’ específico. O educador deve ter presente que ação realiza junto aos estudantes a partir da missão da instituição que ele representa. Foi por isto que se disse, anteriormente, da honestidade intelectual do educador. Este ‘fazer pedagógico’ (que é, também, o ‘fazer da escola’) é intencional na sua concepção e na sua execução, ele é estratégico e, como tal, é composto por metas. Estas metas auxiliam a execução das práticas pedagógicas e metodológicas que se desenvolvem junto aos novos, bem como, contribuem na avaliação da pertinência dos conteúdos ofertados. Neste ‘fazer pedagógico’ encontra-se, atrelado, o ‘não’, mas que dito de forma pedagógica, pois é com ele que se evita os desvios do projeto original ou então se retoma o caminho traçado, ou, ainda, se refaz todo o projeto. Nesse ‘não, mas pedagógico’ está contido o cuidado e a crença que se tem no crescimento do novo, o estudante, diferentemente, de ser um impedimento. O ‘não, mas pedagógico’ configura-se, portanto na aposta que se faz por meio do acompanhamento do ‘fazer pedagógico’. Assim o ‘não, mas pedagógico’ é atitude, fundamentalmente, intrínseca ao processo de lapidação por qual passa cada ser humano o que o afasta de qualquer conjectura de que este ‘não’ seja uma humilhação ou cerceamento de sua criatividade. Negar o “não” quando o processo caminha para o desfecho de injustiça ou de indignidade é antidemocrático, é anti-emancipador, é anti-humano.

Para finalizar este tópico é preciso reforçar a ideia de que está se falando de um novo modo de se relacionar com o meio em que se vive – sociedade e escola – objetivando uma melhor leitura para que a ação seja mais eficaz. Tal eficácia está associada à superação dos mal-estares provocados por aquelas situações de injustiças que ferem a dignidade de todos. Algo que é exigente, pois, implica no enfrentamento de tudo aquilo que está posto como modo e modelo de vida. Mais. Um desafio que não se encerra na simplória oposição A ou B, mas no cotejamento das inúmeras possibilidades AB. Tal cotejamento é lento, mas é nele e é dele que ocorre o processo pedagógico e, acima de tudo, filosófico da ressignificação das relações. Dentre estas ressignificações a que envolve o humano.

 

O ‘incômodo filosófico’ na construção do humano freireano

A ideia primeira de “incômodo” remete a algo ruim e como já se disse traz a conotação de um mal-estar. O mesmo ocorre com a filosofia, pois para muitos é algo abstrato, algo distante e sua exigência, também provoca desconforto. Ora, como se aproximar de algo que traz esta negatividade e ainda querer envolver os novos com ele? Como fazer agradável aquilo que é desagradável? A resposta é simples: aquele ‘incômodo’ tomado de forma ‘filosófica’ constituindo-se, portanto em ‘incômodo filosófico’ é a abertura necessária para que a pessoa saia da sua “zona de conforto” e busque novas significações. Algo demandado continuamente no ambiente escolar, pois tanto os adultos quanto os novos, humanamente falando, se protegem em suas respectivas zonas de conforto. Qual é o ganho que se tem com tal ação? É o de fazer com que a existência muitas vezes sem sentido ou enigmática ou até estática tenha sentido e assim se constitua como humano. É pouco? Não. Trata-se da efetivação daquela atitude corajosa de buscar outras formas de pensar sobre a vida e de intervir nela. E, como tudo isto não se dá de uma só vez a pessoa se em volta de uma permanente e contínua busca, de experimentação, de consolidação e de retomada: o exercício necessário das possibilidades de ser o que quiser ser. No espaço escolar as questões fundamentais povoam a mente dos novos e recorrentemente interferem em seus estudos, por vezes dando vasão à temática, por outras abortando a possibilidade de ressignificação. Tal condição, contudo não elimina o ponto central da temática da humanidade, a saber: o do ser humano. Sim, pois frente às possibilidades algumas escolhas podem não promover o humano atentando frontalmente contra ele. São ações que negam a humanização ou no limite eclipsam a sua identificação. Ainda que de forma bipolar a condição é esta: algumas ações promovem a humanização, outras a negam. Querer manter-se sem um posicionamento é não se colocar em marcha pró-humanização. Vale dizer ainda que este humano que se referencia é real, é concreto, vive e atua em um tempo e espaço definíveis e localizáveis e, neles se desenrola sua existência. Esta precisão, contudo não limita a sua potencialidade de ser, em outras palavras: as condições históricas e materiais não eliminam a sua condição de ser criativo, de alguém que se adequa aos contextos, da possibilidade de ser humano. O “incômodo filosófico”, portanto deve ser tomada com alegria, pois é com ele que as pessoas se fazem humano. Aquilo que Paulo Freire chamará de “pedagogia do oprimido” indicando que um conjunto de ações combinadas, intencionalmente refletidas e relacionadas ao contexto concreto que se vive contribui com o processo de humanização, frente àquelas ações que desumanizam e oprimem tanto a vítima quando o agressor. Freire o diz com estas palavras. “A pedagogia do oprimido que no fundo, é a pedagogia dos homens empenhando-se na luta por sua libertação, tem suas raízes aí. E tem que ter nos próprios oprimidos, que se saibam ou comecem a saber-se oprimidos, um dos seus objetivos.” (p. 40) Evidentemente que Freire está falando de uma prática educativa voltada para os adultos concretos que se encontram de várias formas oprimidos, sobretudo porque lhes são negados o acesso e o direito à palavra que ressignifica e auxilia a pronunciar o mundo agora humanizado. Mas, é possível trazer esta linguagem para o universo escolar atual onde é oferecida uma educação escolar que se deseja pública aos novos – crianças, adolescentes e jovens. Estes novos devem participar deste processo de humanização para que emancipados não repitam os erros passados, sejam capazes de identificarem as situações de injustiça e de indignidade e assim criarem os seus próprios mundos tal como assinalou Arendt (2002). O humano de Freire será apresentado a seguir na correlação que se faz com a educação escolar.

As considerações partem da proposição freireana de que o humano é um ser “conscientemente inacabado” Freire (1987) diz assim: “Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão” (p. 73). Destaque especial para a expressão “conscientemente inacabado”, pois aquele que é consciente tem a condição de saber de sua situação e desta forma se relacionar consigo e com os demais. E como surge esta consciência? É o próprio autor que sinaliza que uma consciência pode e deve  ser despertada, pode e deve ser acalantada por meio de uma educação problematizadora: “A educação problematizadora se faz, assim, um esforço permanente através do qual os homens vão percebendo, criticamente, como estão sendo no mundo com que e em que se acham” (Freire, 1987, p. 72). Este indicativo pró consciência somado à problematização faz recordar de Kant (1985) quando este responsabiliza a pessoa para que ela tome a sua vida e passe a “pensar por si mesmo” (p. 100), pois é nesta condição de ser pensante que a pessoa se depara com ela mesma buscando o melhor entendimento e a melhor ação para a sua existência e a de seus pares. Este “inconcluso” ganha contornos de possibilidades e reforçando uma ideia anteriormente desenvolvida “o melhor entendimento”, “a melhor ação” é aquela que promove a humanização de si e dos outros. O humano de Freire é alguém “conscientemente inacabado”, mas com potencialidade para conscientemente agir a favor de sua humanização que o completa. Mais: a educação escolar pode contribuir com este processo de humanização, pois “a desumanização [...] é distorção da vocação de ser mais. É distorção possível na história, mas não vocação histórica” (p. 30). De fato, é porque a humanização e a negação da mesma ocorrem no concreto da  existência humana que se constrói nas relações ente as pessoas, é nesta concretude e nestas relações que as pessoas devem atuar descartando quaisquer explicações conformistas em especial as que remetem para as teses do acaso ou do destino.

O humano de Freire ainda traz outra faceta importante. É sugestivo constatar que este humano “pensa por si mesmo” e que ele age buscando “ser mais”, contudo é necessário acrescentar que a pessoa se humaniza trazendo consigo a outra que também está em processo de humanização. Diz o autor: “E aí esta a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores” (Freire, 1987, p. 30). Como isto se efetiva na prática? Primeiro pela pronuncia da palavra com o outro, segundo pela crença que se tem no outro. Neste sentido a educação escolar ganha de novo visibilidade e atinge a dimensão de pública tal como deve ser.

 

A efetivação do ‘incômodo filosófico’ no espaço escolar

Como já se apresentou, no espaço escolar é possível e necessário que os agentes problematizem o que lhes cercam enquanto pessoas que são. Tal problematização objetiva a construção de uma consciência de si e do outro agindo assim pró-humanização de ambos. Mas para que isto se efetive se faz necessária a palavra que seja do domínio de ambos. Já se acenou para a presença da “polifonia de vozes” que sinaliza a seu modo o exercício da liberdade de expressão. O que se objetiva agora é fazer com que este exercício possibilite a construção de significados comuns. A palavra que possibilita compreender em que realidade se encontra e tomando-se consciência do estado em que se encontra buscar ações para tornar-se sujeito de sua  existência, portanto humano. A palavra aqui referida não é qualquer uma, mas sim aquela “[...] verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo” (Freire, 1987, p. 78). Impõe-se a todos e em especial aos profissionais da educação o efetivo ‘exercício da fala’ que consiste em breves palavras: na saída das falas soltas, desconexas, por vezes egocêntricas para aquelas falas organizadas, conectadas, partilhadas objetivando ressignificar uma ideia, um posicionamento, uma ação para todos. A experiência docente que se constrói a cada dia junto às turmas parte de um currículo oficializado pelas autoridades da educação. O professor propõe uma situação ou provoca uma situação onde cada pessoa é levada a se expressar de tal forma que se problematize uma questão conceitual ou atitudinal. É por meio da fala que o conceito ou a atitude vão sendo lapidados, ancorados no repertório filosófico. Não se trata exclusivamente de se ter consensos de tal forma que todos pensem iguais, mas de que todos possam dizer a sua palavra, que esta palavra seja considerada, cotejada e se construa algo do qual todos possam se referenciar para novas construções. O ponto central a ser destacado nesta intervenção de uma educação escolar pública é o de que todos podem dizer a sua palavra, pois isto “[...] não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-lo para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais” (Freire, 1987, p. 78) Neste ‘exercício da fala’ a palavra vai sendo lapidada e se constituindo algo do grupo a favor de cada um e de todos. Mas, para que se atinja tal nível de entendimento e ação é preciso que se creia no outro e aqui se apresenta uma outra dimensão de vínculo entre as pessoas e o mundo que faz com que esta educação escolar seja diferenciada. Na sala de aula é possível observar o crescimento das pessoas que vão formatando um jeito próprio de posicionamento frente ao debate. O ‘exercício da fala’, portanto deixa de ser formalidade por duas razões básicas: primeiro porque a palavra é direito de todas as pessoas e negá-la e referendar as situações de opressão que por sua vez desumaniza a todos. Segundo porque acredita-se que o outro tem algo a oferecer neste longo e difícil processo de ler e dar sentido à realidade que cerca a todos. Ao longo da história e mesmo nestes tempos é visível o prejuízo que se tem provocado pelo silenciamento das vozes dos indígenas, negros, mulheres, crianças, idosos entre outros que certamente tinham e têm algo a contribuir com todos. Neste sentido é de fato revolucionário conceber uma educação escolar onde a fala é de todos e para todos. Ação revolucionária porque esta palavra ressignifica o mundo sinalizando outras possibilidades.

Em qualquer destes momentos, será sempre a ação profunda, através da qual se enfrentará, culturalmente, a cultura da dominação. No primeiro momento, por meio da mudança de percepção do mundo opressor por parte dos oprimidos; no segundo, pela expulsão dos mitos criados e desenvolvidos na estrutura opressora e que se preservam como espectros míticos, na estrutura nova que surge da transformação revolucionária. (Freire, 1987, p. 41-42)

Considere da citação feita que o esforço de se dizer a palavra implica entre outros em buscar outras formas de se pensar a própria realidade e com isto construir outras lógicas de convivência e de ação. No espaço escolar é visível o arraizamento do pensamento científico que hegemonicamente se põe sobre todas as outras iniciativas subjetivas que se apresentam. O que  se apresenta, portanto é uma educação escolar que seja capaz de se aproximar do humano de Freire e este sendo habilidoso para ressignficar o mundo identificando os jogos emblemáticos contidos na “(i) lógica do consumo” que se apresenta nestes tempos como a grande fazedora de oprimidos e opressores que desumaniza a ambos. Mas, isto é possível? Sim, na ação efetiva que se faz pautada na crença que o outro é capaz de dizer aquela palavra.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação escolar em todos os tempos esteve frente a inúmeros desafios que a sociedade da época impôs, nestes tempos não é diferente. Os profissionais da educação são desafiados a reverem o significado de humano, de humanidade e para si identificarem o que se coloca como sinais e ações efetivas de morte. Será com tais reflexões e com os posicionamentos que delas vierem que se dirigirão aos novos auxiliando-as a também identificarem aqueles impeditivos de vida. Contudo, para além de uma educação voltada para a denúncia é preciso que haja nesta ação uma atitude de esperança. A educação traz consigo a ideia de esperança, pois do contrário se deixaria estes novos a seu bel-prazer. Com tal ação evidentemente a humanidade estaria condenada a um fim. Mas, exatamente porque os novos estão aí presentes que os adultos são devem se revigorar e mais uma vez lançar mão de seus feitos, os bons e os não tão bons, e se dirigir aos novos. Promover e cultivar na formação dos profissionais da educação o ‘incômodo filosófico’ de tal forma que eles façam o mesmo junto aos novos e seus responsáveis resulta na grande contribuição da educação escolar, pública, recordando dos benefícios que advém do ‘exercício da fala’: da fala dispersa para a fala significante que se apresenta como referência para todos; do aumento e da qualidade do repertório voltado para a filosofia; da crença que se constrói frente ao outro com qual se realizam as falas; da ampliação do olhar entre aquilo que é privado para o público; do critério que se estabelece pró-justiça, enquanto equidade e a dignidade da pessoa humana. Neste sentido Paulo Freire inspira esta nova investida e o faz de forma cativante, sem deixar de ser incisivo. Cativante, pois convida a olhar no entorno da realidade que cerca a todos. Um olhar de curiosidade a princípio, mas que requer num segundo momento uma ação contundente. Neste sentido ele é incisivo, pois esta ação deve promover humanidades e isto pede coragem. Como inspirou José Saramago olhar algo e ser capaz de vê-lo exige ações de reparo. Nossos tempos pedem estas posturas de olhar, de ver, de reparo. Nossos tempos pedem o olhar curioso e ações incisivas, mas todas elas calcadas na esperança e na crença de que juntos com os novos sejam possível criar novas relações onde os humanos sobressaiam.

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Apple, M. (1999). Que os pós-modernos esquecem: capital cultural e conhecimento oficial. In: Neoliberalismo, qualidade total e educação – visões críticas. Petrópolis: Editora Vozes.

Arendt, H. (2003). A crise na educação. In: Entre o Passado e o Futuro. SP: Perspectiva.

Bauman, Z. (1998). O mal-estar da pós-modernidade. RJ: Jorge Zahar Editor. Camus, A. (1989). O mito de Sísifo. RJ: Editora Guanabara.

Chauí, M. (2002). Filosofia. SP: Editora Ática.

Freire, P. (1987). Pedagogia do Oprimido. RJ: Paz e Terra.

HorkheimeR, M. (1975). Conceito de Iluminismo. In: Os Pensadores. SP: Abril Cultural.

Kant, I. (1985). Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento”? (“Aufklarung”). In: Textos Seletos. Petrópolis: Vozes.

Platão (1957). Apologia de Sócrates. SP: Atena Editora.

Silva, T. T. (1999). A “nova” direta e as transformações na pedagogia da política e na política da pedagogia. In: Neoliberalismo, qualidade total e educação – visões críticas. Petrópolis: Editora Vozes.



[1] Discursos confusos que colocam a vingança como sinônimo de justiça. Um encantamento de muitos a favor de uma suposta ‘instauração da ordem’ calcada em uma pessoa ou em um grupo específico: o salvador ou, os salvadores da pátria, que executará a ‘limpeza’ social tal como sinalizou Bauman (1998).

[2] Ainda que haja um traço ontológico/metafísico nesta ideia de humano universal, há o reconhecimento de que se trata de humanos que no seu tempo e espaço procuram estabelecer um jeito de viver e, são violentados por isto, portanto trata-se de humanos concretos.

[3] São globais, mas ao mesmo tempo são nascidas em um núcleo específico, particular e, daquele local se encaminham para o global, aterrissando em outros núcleos particulares.