Paulo Freire. Revista de Pedagogía Crítica
Año 15, N° 17
Enero – Junio 2017
ISSN 0717 – 9065 ISSN
ON LINE 0719 – 8019
pp. 147 - 172
Premisas
freireanas para educar en el contexto de y para los derechos humanos
Paulo Freire’s premises for teaching within and for human rights
Resumen
A partir de la movilización
por la redemocratización, perseguida por los movimientos sociales
latinoamericanos debido a la conciencia de exclusión, en un período marcado por
la Violación de los derechos por parte
de los gobiernos dictatoriales, la educación reflexiva surge como respuesta
alternativa a la educación popular. Recubierta de autenticidad, ya que se basa en los reales saberes y deseos de grupos sociales, esta educación reflexiva
fomenta en los sujetos el
reconocimiento de sí mismo ante las formas de opresión forzadas en esta época.
Este sesgo de la educación serviría más adelante a un proyecto educativo
llamado Educación en Derechos Humanos - EDH - por revelarse elemento
fortalecedor para la redemocratización de los espacios y procesos sociales. En
este artículo, se busca presentar la interfaz entre la pedagogía crítica propuesta por
Freire y el educar en el contexto de y para los derechos humanos - EDH –
una propuesta contemporánea de una educación más humanizada, ampliamente
discutida y defendida por el autor
chileno Magendzo. La metodología utilizada se basa en una extensa revisión de la bibliografía, lo que justifica el
diálogo con otros autores latinoamericanos que tratan del tema de la EDH que,
al discutieren los conceptos y supuestos metodológicos de esta educación,
tienen como pilares ideas y propuestas freireanas de educar para la
transformación de los sujetos en el
mundo, con el mundo y con los otros.
Palabras clave: derechos humanos, educación en derechos humanos, curriculum
*
Universidade de Brasília- UnB; Ana Paula Rodrigues da Silva; e-mail: anapaularsias@gmail.com
Fecha de
Recepción: 1 diciembre 2016
Fecha de
Aceptación: 8 mayo 2017
Abstract
From the mobilization for
redemocratization, persecuted by Latin American social movements due to
exclusion consciousness, in a period marked by the Violation of rights by dictatorial governments,
reflexive education comes as an alternative response to popular education. Covered in
authenticity, since it was based on the
real knowledge and desires of social groups,
this reflexive education
fostered into subjects
a self-recognition to
the forms of oppression
enforced at the time. This education bias would eventually serve to an educational project called Education on Human Rights – EDH – for revealing
itself as an empowering element for redemocratization of social spaces and processes. In this article, one aimed to
present the interface between the critical pedagogy proposed by Freire and the
education within and for human rights – EDH - a contemporary proposal for a
more humanized education, widely discussed and defended by Chilean author
Magendzo. The methodology used was based on
an extensive literature review, which justifies the dialogue with other
Latin American authors who deal with EDH, and as they discuss methodological
concepts and assumptions of this
education, they have Freire’s ideas and proposals as pillars to educate for the
transformation of subjects in the
world, with the world and with others.
Keywords: human rights, education on human rights, curriculum.
Ao tratar de alguns aspectos históricos do processo educativo, evidencia- se que a educação, enquanto fenômeno social sofre transformações por estar estreitamente ligada aos contextos vividos pelos sujeitos. Por não ser neutra, a educação desempenhou a cada tempo diferente papéis, principalmente a formal. Nem sempre esteve a serviço da socialização e humanização. (Andrade, 2013).
Enquanto seres inacabados e em constante busca de atender nossas necessidades, vivemos em processos de transformação para estar no e com o mundo. Esses processos se valem da educação postulada como atividade inerentemente humana. Ocorre que ela nem sempre foi vista como direito essencialmente humano, reduzindo o direito de aprender a apenas estar no mundo e não, a saber, como ele funciona e assim transformá-lo. Quando Andrade (2013) aborda essas questões, procura enfatizar que tão importante quanto nos educarmos para adaptarmos ao mundo, é igualmente ou mais importante usar essa educação para atuar sobre ele. Nessa seara, considera que somos seres sociais, diferentes, mas dependentes uns dos outros para aprendermos e sobrevivermos.
Assim, seguindo na lógica de seres inacabados, tornar-se humano não se refere a um aspecto de ordem biológica apenas; tornar-se humano, segundo Pulino (2008), perpassa por um conceber simbólico de identidade. O sujeito humano constrói tal identidade a partir de termos históricos, culturais, sociais. Essa compreensão torna-se importante para fundamentar uma reflexão das roupagens que trajou a educação e do papel da escola, no sentido da formação oferecida: se é no sentido de naturalizar as ações humanas desvinculadas dos aspectos históricos ou em outro sentido, que é de considerar essas ações como sendo as de sujeitos sociais, que dependem e transformam as contingências e as circunstâncias em que vivem.
Situarmos o sujeito num processo histórico coletivo e individual possibilitaria a melhor compreensão de conflitos e contradições próprios, em que naturais seriam as diferentes formas de ver e estar no mundo, numa construção do mundo pelo ser humano para o ser humano. A centralidade residiria no tornar-se e não no absolutismo imposto pela ideia de naturalização do que é humano (Maciel y Pulino, 2008).
Se assim tomarmos a educação, coordenada pelo social para formação de indivíduos e transformação das diversas realidades, a educação estará como direito, direito básico, como direito humano, de acordo com Andrade (2013). A educação, postulada assim pelo autor, reside num processo de humanização que reconhece por esse aspecto que todos e todas sejam dignos e valiosos de tornar-se o que são: humanos.
O tema Direitos Humanos é, há muito, discutido nos planos internacional e nacional, embora seja temática relativamente recente no cenário da educação básica formal. O preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos[1] (DUDH) (ONU, 1948) afirma que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.” A proclamação da Carta das Nações Unidas já anunciava oficialmente o início da Educação em Direitos Humanos (EDH), já que a própria Declaração se configurava como instrumento pedagógico de conscientização (Cançado Trindade, 1993).
Dessa constatação, instou a elaboração da Declaração e Programa de Ação de Viena, que destacou a essencialidade de uma EDH. O documento reafirma que, por meio da educação, se promova a compreensão, a tolerância, a paz e a democracia, com ênfase na participação popular e da sociedade civil (Declaração, 1993). No Artigo 79 da referida Declaração, há a recomendação para inclusão da EDH nos planos, programas e currículos dos sistemas de ensino formal e não formal. O período compreendido entre os anos de 1995 a 2004 correspondeu, então, à Década das Nações Unidas para Educação em Direitos Humanos, segundo o estabelecido pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), recomendando aos governos que se debruçassem sobre o tema durante uma década, como forma de sensibilizar e mobilizar os Estados (Declaração, 1993).
A EDH, nos contextos latino-americano e brasileiro, começou a ser implementada no período de transição de governos ditatoriais a democráticos (Candau, 2008). O movimento trazia a marca da articulação entre práticas sociais e conhecimento, atitudes e sentimentos vividos de nossos contextos históricos, em que os direitos humanos se tornam um componente importante dos processos de redemocratização e modernização da educação (Magendzo, 2006).
Viola (2010) traz à reflexão o período que se desenhou entre avanços e retrocessos paradoxais na questão dos Direitos Humanos (DH) na América Latina e no Brasil, evidenciando, dessa forma, que a trajetória de consolidação de direitos não ocorreu linearmente. Atenta para o fato de que “a sociedade brasileira não reconhecia nos direitos humanos um pressuposto para construção de um modelo para toda a sociedade e para cada um de seus indivíduos” (p.16). Nesse cenário, foi fundamental o papel desempenhado pelos movimentos sociais, uma vez que assumiram um discurso de direitos humanos (DH) para além da representatividade democrática. Os movimentos sociais latino-americanos da década de 1980, feitos da participação de múltiplos grupos, foram capazes de revelar que, para a “vigência plena dos direitos sociais e econômicos” (Viola, 2010, p. 21). Era essencial que a democracia
pautasse todas as ações.
Viola (2010) e Dornelles (2014) destacam a relação intrínseca entre democracia e direitos humanos. A ligação entre essas duas categorias, ao longo da história, foi revelada na medida em que se ampliava a participação cidadã dos sujeitos que exigiam dos governos o reconhecimento da liberdade, igualdade e de direitos.
Dada a importância da premissa democrática, há que se ressaltar que, das interações de alguns movimentos sociais, surgiu uma mobilização em decorrência da “consciência de exclusão e injustiça em que se encontravam” (Sacavino, 2009, p. 76). Viola (2010) afirma que “foi no interior do movimento social, portanto a partir da sociedade civil, que se produziu o projeto de educar em direitos humanos.” (Viola, 2010, p. 22). Para tanto, a organização da educação popular, em que pese sua autenticidade, por “ouvir e recolher os saberes e desejos da sociedade” (Viola, 2010, p. 30), serviria de base ao projeto educativo de EDH, na medida em que possibilitaria a ressignificação política de sujeitos e seus sentidos.
No intuito de consolidar o compromisso tangente aos direitos humanos, o Brasil lançou o Programa Nacional de Direitos Humanos I (PNDH) em 1996, sendo reformulado em 2002. Este primeiro plano, ainda que tenha apresentado como foco os direitos civis e políticos, reconheceu a Educação e a Cidadania como direito base para promoção de uma cultura de Direitos Humanos. Em 1996, contribuindo para a construção de um cenário de educação cidadã, foi aprovada a Lei 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Em seu art. 26, caput, a lei afirma que o currículo do ensino fundamental deve ter base nacional comum e no §9o do mesmo artigo, determina que os conteúdos referentes aos “[...] direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança e adolescente sejam incluídos nos currículos escolares como temas transversais” (Brasil, 1996).
Com base no Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos (PMEDH), o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) foi lançado em 2003, sendo finalizado em 2006. O PNEDH é constituído por cinco eixos: Educação Básica, Educação Superior, Educação Não Formal, Educação dos Profissionais de Justiça e Segurança e Educação e Mídia. Este Plano preconizou diversas ações educativas em direitos humanos.
De acordo com Tavares (2015), foram as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (DNEDH–2012), documento mais recentemente homologado, que vinculou a inserção da temática enquanto política pública educacional no sistema de ensino brasileiro ao instituir a EDH enquanto eixo fundamental do direito à educação. Ainda segundo a autora, a partir dos Planos e seguindo orientação do Ministério da Educação (MEC), encaminhamentos nesse sentido tiveram início, em 2010, pelas Secretarias de Estado de Educação e do Distrito Federal, a inserção na rede pública de ensino da abordagem dessa perspectiva, por meio da elaboração e implementação de um currículo da educação básica que incorporasse a EDH como eixo estruturante dos conteúdos ali presentes.
Para o professor chileno Magendzo (2006), a prática educativa em EDH preceitua o reconhecimento e a defesa dos direitos humanos, em que o sujeito possa alcançar o máximo do desenvolvimento de suas capacidades. Dessa forma, Magendzo (2006) destaca a interface entre a pedagogia crítica e a Educação em Direitos Humanos proposta pelo especialista nessa temática de educação e ícone daquela pedagogia, o educador Paulo Freire.
Esse autor nos apresenta a importância de que se alcance a perspectiva freireana de educação ao tratarmos de uma educação em e para os direitos humanos, por encontrar nesse pensamento princípios que alicerçam essa teoria e a prática. Não à toa, a Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, se consagra como um dos fundamentos da pedagogia crítica, pois desvela, sob a lente da educação, uma visão de humano que não apenas se naturaliza, mas se humaniza no e com o mundo, ou seja, se faz de história.
Como coloca Fiori (1983), no prefácio de Pedagogia do Oprimido, enredando com o que fomenta Magendzo, a educação deve considerar o mundo vivido e problematizado do sujeito, a consciência de si e do mundo e a consciência do outro, originariamente comum, permitindo comunicação. A referida educação faz o uso social do conhecimento, reafirmando que não basta proporcionar ao oprimido o processo de aprendizagem, mas também o alcance da consciência crítica a fim de reconhecer os motivos reais que estão na raiz de questões que nos assolam socialmente (Freire, 1983).
Um dos fundamentos da teoria freireana é a crença no poder libertador da palavra e do diálogo entre os homens. Freire trabalha com a ideia de que a palavra, o verbo, se faça a partir da realidade vivida pelos sujeitos, para que, assim não se esvazie de sentido e se concretize em ação (Furter, 2014). Palavras como democracia, liberdade e justiça só alcançariam autenticidade uma vez que fossem assimilados pelas camadas populares como modo de viver em resposta a uma sociedade dominada e regida pelos interesses de classes dominantes.
Para tanto, Freire (1983) propõe uma pedagogia da liberdade onde o educador, imbuído de ética e compromisso social, faça criticamente a leitura das realidades, das histórias de seus educandos, do contexto social, econômico e político. Diante disso, Weffort (2014) ressalta que as ideias de educação de Freire têm “significação sociológica e política” (p.9). Educandos livres seriam, então, a implicação de uma educação edificada no aprendizado da própria cultura, do contexto vivo de cada educando. A educação crítica e reflexiva estaria como instrumento para verdadeira conscientização das massas populares, no reconhecimento de si e das condições de opressão, em que a luta pela liberdade e pela transformação sairiam do plano da idealização (Weffort, 2014; Freire, 1983).
As ideias de Freire são marcas de experiências vividas pelo educador num cenário de crise política no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970, que afetava incisivamente as classes populares. Por essa razão, o constante processo de busca para transformação era perseguido nas reflexões freireanas, pois disso constitua o legítimo saber, o verdadeiro conhecimento feito por sujeitos no mundo, com o mundo e com os outros (Freire, 1983). A manutenção de posições frente ao mundo, a invariabilidade e a rigidez de saberes são instrumentos de opressão que desumanizam indivíduos, que forçosamente não se integram à realidade espaço-temporal, mas apenas se ajustam, se acomodam e se adaptam (Freire, 2014):
Insistimos, em todo o corpo de nosso estudo, na integração e não na acomodação, como atividade da órbita puramente humana. A integração resulta da capacidade de ajustar-se à realidade acrescida de transformá-la a que se junta a de optar, cuja nota fundamental é a criticidade. Na medida em que o homem perde a capacidade de optar e vai sendo submetido a prescrições alheias que o minimizam e as suas decisões já não são suas, porque resultadas de comandos estranhos, já não se integra. Acomoda-se. Ajusta-se. O homem integrado é o homem Sujeito. A adaptação é assim um conceito passivo — a integração ou comunhão, ativo. Este aspecto passivo se revela no fato de que não seria o homem capaz de alterar a realidade, pelo contrário, altera-se a si para adaptar-se. A adaptação daria margem apenas a uma débil ação defensiva (Freire, 2014, p. 41).
Na visão do autor, o educador autêntico abandona posturas que o colocam como a de ser sujeito do processo e o educando como objeto. Deixa de conceber o educando esvaziado de saber e experiência, mas se coloca a mediar a inserção do educando no mundo, estimulando um pensar autêntico e, dessa maneira, favorecer o desenvolvimento crítico da consciência de si e do outro, de modo que esse exerça o direito a sua realidade (Freire, 1983).
Na verdade, o que ele quer denunciar é que a educação que se presta a disciplinar, a adaptar, a assistir, a domesticar seus sujeitos nega “sua ontológica vocação de ser mais”, sua autonomia (Freire, 1983, p. 85) e, nesse caso, está a serviço da desumanização. Os sujeitos, em sua vocação ontológica, são “seres de busca” (Freire, 1983, p. 86), de ressignificação e transformação das suas realidades; por conseguinte, quando postos em privação de suas liberdades de ser na linha da contraditória concepção bancária de educação, o que se evidencia é o apassivamento desses sujeitos, educando-os para melhor se adequarem ao mundo e não com o mundo, convivendo, sendo com os outros.
Na concepção humanista de educação defendida pelo autor, o pensar não é superposto, não serve à dominação, mas nasce da ação dos sujeitos, entre si, no mundo. A partir disso, “[...] a libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita” (Freire, 1983, p. 93) nos sujeitos é efetivada na ação sobre o mundo, que os desafia e problematiza, incita-os à criatividade, à ação e à reflexão, permitindo se perceber em movimento enquanto seres inacabados. A educação pretensamente libertadora e autêntica é “um quefazer permanente. [...], na razão da inconclusão dos homens e do devenir da realidade. [...] se re-faz constantemente na práxis” (Freire, 1983, p. 102).
Sob tal enfoque, a pedagogia crítica de Paulo Freire coloca em xeque a educação formal, que geralmente reproduz injustiças sociais (Magendzo, 2006). Freire, ao propor constantemente a vinculação do saber à realidade vivida, evidencia o quão imprescindível é o uso social do conhecimento e do diálogo, empoderando politicamente os sujeitos. Essa é a base, segundo Magendzo (2006), de uma educação em direitos humanos, uma educação política que contribui para identificação de motivos reais de problemas que acometem as pessoas. A esse respeito, encontramos a seguinte colocação:
[...] la educación en derechos humanos tiene como propósito central formar sujetos de derechos, es decir sujetos empoderados que usan el poder de la argumentácion, de lá razón, de la confianza, para hacer vigentes sus derechos y los derechos de los demás; [...] (Magendzo, 2006, p. 66)
A partir dessas afirmações, o autor evidencia uma dimensão medular na educação em direitos humanos: a alteridade. Os sujeitos, a partir dessa dimensão, são chamados ao reconhecimento do outro em sua singularidade, à mútua aceitação e ao compromisso ético com o próximo, porque é com o outro que nos fazemos sujeitos (Magendzo, 2006).
Esse compromisso e reconhecimento se realizam por meio do diálogo autêntico, que, segundo Buber (2014), significa considerar o outro em sua totalidade. Nesse entendimento, a fala entre os participantes se pauta em estar verdadeiramente presente, “[...] tem de fato em mente o outro ou os outros na sua presença e no seu modo de ser e a eles se volta com a intenção de estabelecer entre eles e si próprio uma reciprocidade viva; [...]” (Buber, 2014, p. 54). A vida dialógica para Buber (2014) não se reduz ao autocentramento, em que se vê somente a si próprio, onde a existência do outro não importa; ao contrário, toma conhecimento íntimo “de uma outra pessoa na sua singularidade”, do “[...] dobrar-se-em-si-mesmo a admissão da existência do Outro somente sob a forma da vivência própria, somente como uma parte do meu eu” (Buber, 2014, p. 58).
Com efeito, a escuta sensível promove a percepção do outro, a encarnação verdadeira do Eu e Tu no mundo. A conversação genuína, outra essência importante do diálogo, como bem ressalta Buber (2014), pressupõe que, mesmo na contraposição de ideias entre os participantes da conversa quanto ao objeto discutido, exista a reciprocidade na linguagem, na aceitação dos modos de ser. Tanto o filósofo Buber quanto o educador Freire apontam para o valor da comunicação, do diálogo autêntico e comprometido que ambicione a verdadeira percepção do outro, em sua integralidade e unidade.
Todos esses elementos permeiam a educação em direitos humanos, expressos nos cinco princípios didáticos propostos por Magendzo (2006). Destacamos três deles, o princípio da Integração, refere-se à integralidade de temas dos direitos humanos que compõem os conteúdos curriculares e programas. Os conteúdos, assim dispostos, perpassam por todas as demais áreas de conhecimentos, sendo a temática problematizada e refletida mais criticamente.
O princípio da Coerência, que significa viver aquilo que está presente no discurso. Esse princípio repercute seguramente na prática docente, segundo Magendzo (2006), pois se refere à metodologia empregada. A práxis do ensino e aprendizagem, quando ajustada às premissas de direitos humanos, reflete respeito e reconhecimento à autonomia, à solidariedade e à liberdade. Esse princípio retoma o papel do diálogo permanente, entendimento amplamente defendido por Freire e Buber.
O Princípio da Vida Cotidiana vem confirmar que a EDH está para além dos muros da escola, “estrechamente vinculada con la multiplicidade de situaciones de la vida cotidiana” (Magendzo, 2006, p. 68). A pedagogia em direitos humanos busca incorporar as experiências e os conhecimentos prévios dos educandos, com o fim de uma educação construtiva, em movimento, em constante fazer, pois aquelas pessoas são constantemente transformadas e ressignificadas, (Magendzo, 2006).
O conceito ora examinado reflete uma concepção de educação e direitos humanos que está para além dos conteúdos. Prevê uma educação política e ativa, de formação cidadã em movimento constante, porque os conteúdos têm sua aplicação e intervenção imediata na realidade. A compreensão dos conteúdos presentes nas legislações, planos e programas, bem como a história dos direitos humanos é tão fundamental quanto sua associação à transformação da realidade (Silva, 2010). De tal modo, Silva (2010) observa que nessa perspectiva “as práticas de cidadania devem ser vivenciadas no cotidiano sem interrupções de tempo, espaço e lugar” (Silva, 2010, p. 50). Por isso, podemos aferir que a educação para[2] direitos humanos, enquanto direito, está para o exercício da cidadania.
Buscamos compreender o uso de duas preposições presentes na expressão desse processo educativo: Educação em[3] e Educação para[4] Direitos Humanos. Além do que já foi exposto, o entendimento de Dornelles (s/d) por educação para os direitos humanos é aquela que se relaciona diretamente com a consolidação de práticas sócio–políticas democráticas, inclusive a pedagógica, onde inúmeras relações sociais se estabelecem no seio das sociedades. Aguirre (2007), enfatiza que educar para os direitos humanos, além de estar para defesa de direitos, deve orientar-se para pluralidade cultural, para se fazer pessoa e para conhecer a existência do outro enquanto ser tão social como nós.
Já Educação em Direitos Humanos, conforme Carbonari (2009) e Candau (2008) constitui-se um educar na tolerância, educar em princípios democráticos e, principalmente, na afirmação da dignidade humana em processo permanente e global. Complementa Tavares (2007) que é propiciar experiências em que se vivenciem direitos humanos, donde a ética se funde como importante elemento no delineamento desse fazer pedagógico.
Carbonari (2014), autor que subsidiou seu entendimento de EDH numa visão de educação como prática da liberdade, iconicamente anunciada por Paulo Freire, entende que educar em direitos humanos é “educar para a prática, para a ação, como prática da liberdade e como ação livre. Não é só preparar para o exercício da liberdade, é já educar com liberdade, na liberdade e para a liberdade” (p. 170). E completa, que por essa razão "o processo educativo libertador não é concessão, mas engajamento e construção [...]” em que educar para liberdade se constitui centralidade da “ação educativa em direitos humanos” (Carbonari, 2014, p. 170 e 171).
Nessa mesma lógica, Benevides (2003) discorre que a educação em direitos humanos alude uma formação de cultura e transformação de práticas. Para dar conta dessa frente de educação, o envolvimento dos educadores deve estar para um compromisso e formação contínuos, e ultrapassar a simples transmissão de conteúdos, deve afetar “corações e mentes” (Benevides, 2003, p. 309). O comprometimento dos educadores envolvidos deve ser constante no sentido de sensibilizar e disseminar uma cultura de direitos humanos que tenha como mote o respeito pela dignidade humana em todas as suas dimensões.
Sob ótica semelhante, Carbonari (2014) e Padilha (2008) assinalam reflexões importantes acerca dos educadores na perspectiva de uma educação em e para os direitos humanos. Sublinham a propensão daqueles que exercitam seus próprios direitos em diferentes contextos, sejam eles sociais, político, econômico, a serem igualmente capazes de alinhar-se à perspectiva em questão. De outro modo, educadores que agem, aprendem, vivem, respeitam e se permitem transformar pelos direitos humanos, poderão assim educar (Padilha, 2008; Carbonari, 2014). Em ambos os autores, percebemos a retomada de categorias freireanas que sustentam uma educação humanizadora. Uma dessas categorias refere-se à ideia do ser inconcluso, incompleto, em permanente transformação com o mundo, pelo mundo e no mundo que vive, o que corrobora com mencionada reflexão de Benevides (2003) acerca do permanente compromisso assumido pelo educador que intenta enveredar por essa prática alternativa.
O entendimento de Carbonari (2014) sobre a práxis e a concepção do educar em direitos humanos decorre da antropologia de base da educação libertadora. Esse especialista verifica que a prática educativa e o pensar pedagógico que comprometem a liberdade de ser, de criar, inventar, transformar e construir conhecimento são desumanizadores e, por isso mesmo, tão Violador de direitos quanto as práticas comumente adotadas pelos opressores. A violência viria do não reconhecimento de que seres humanos são essencialmente históricos; por isso, cingidos em movimento estarão sempre à procura de ser mais (Carbonari, 2014). Essa desconsideração, proveniente do fazer educativo ordenadamente autoritário e pensado unilateralmente, Viola direitos dos sujeitos envolvidos. Nesse ponto, a prática libertadora educativa se associa fortemente à prática educativa de direitos humanos. Por isso, Carbonari (2014) comunga também de outras expressões que constituem o entendimento de Freire, como “seres que estão sendo”, “em e com uma realidade”, por observar que elas exprimem a visão de “humanidade como processo e projeto” (p.172).
O foco na humanização dos sujeitos na ação educativa, em consonância com a prática discorrida, integra a educação em direitos humanos, exigindo o engajamento de educadores-educandos[5], no sentido de identificarem profundamente “novas demandas por novos conteúdos dos velhos direitos ou mesmo por novos direitos com novos conteúdos” (Carbonari, 2014, p. 178).
Admitindo, para essa abordagem, o surgimento de novos conteúdos e direitos, é relevante também a compreensão discutida por Carbonari (2007) sobre a formação de sujeitos de direitos enquanto as crises sociais, resultante de crises políticas e econômicas, são vividas. Tal como Buber (2014), Carbonari afirma que:
Relação é presença, é reconhecimento, que é construção. O outro é que põe o eu, de tal sorte que a subjetividade é, antes, intersubjetividade. A consciência, como presença crítica, é vida que vive e ajuda a viver. Relações que não alimentam o reconhecimento dos distintos em comunhão são não-relações (Carbonari, 2007, p. 174).
Bittar (2007) destaca que a exigência à educação em nossos dias, em tempos operados pela racionalidade instrumental em que “tudo se desvirtua em produto” (p. 318) inclusive a educação, se traduz em redefinir valores, construir autonomia e consolidar a emancipação. Para tanto, urge o abandono de práticas que supervalorizem, equivocadamente, a teoria por ela mesma, o discurso esvaziado de realidade e do sentido trazido pelos educandos; no lugar disso, que se recupere a “capacidade de sentir e pensar” (p. 323). A metodologia para essa prática pedagógica humanizada, com vistas a uma cultura de direitos humanos, deve tomar a sala de aula como lugar de experimentos das relações, das ciências, do movimento dos sentidos para “percepção do real” (Bittar, 2007, p. 324).
Tal como propõe Mujica (2002), uma concepção humanizadora de EDH terá cada pessoa na centralidade da aprendizagem. Isso significa a autonomia reconhecida a cada indivíduo para operar objetos de sua respectiva realidade e experimentar os significados a estes atribuídos histórica e culturalmente. A educação humanizadora integra conhecimentos prévios aos novos, afeta sentimentos e valores, por fim, resultando em novo conhecimento. Educar nessa perspectiva de tornar significativo o que se apreende, aprende e conhece é educar em direitos humanos. Ao fazê-la desse ponto, a aprendizagem dirá respeito a mim, ao outro, à vida, ao mundo, atraindo o interesse dos envolvidos para experimentar, explorar e buscar soluções.
Conforme Mujica (2002), o educador imbuído dessa perspectiva assume um estilo de ser que enxerga a todos como diferentes, mas iguais em direitos e dignidade. Alcançada essa visão, a metodologia da humanização, que parte dos contextos socioeconômicos e cultural, caminha na seara do sentir e do entender os interesses dos envolvidos no processo, na percepção de problemas e necessidades, na percepção de si mesmo frente o mundo. Efetivamente, a comunicação horizontal alicerça a metodologia humanizada da educação em direitos humano, pois carrega a premissa de respeito mútuo, ao propor que os sujeitos escutem o outro (Mujica, 2002).
A proposta metodológica em EDH afirma valores voltados para uma formação mais humana, onde a escola seja um espaço social propício à construção de educandos conscientes e participativos. Propõe, dessa maneira, que, o educar nessa temática seja desenvolvido transversalmente, uma vez que remete a conteúdos como ética, justiça, solidariedade, respeito (mais atitudinal que teórico). Para desenvolver uma educação pretensamente humanizada, é fundamental viver seus preceitos nas mais diversas instâncias. Por isso, incorporá-la aos Projetos Políticos Pedagógicos, Projetos Curriculares, Regimentos Escolares e Planejamento são tão elementares.
Moreira (2007) ao reconhecer a complexidade e a abrangência de um currículo, remete-nos a algumas questões concernentes ao modo que compreendemos o documento que carrega, além de conhecimentos a serem difundidos, visões históricas de mundo, de ser humano e de educação. Nos leva a conjecturar a medida da nossa participação, enquanto educadores, na discussão do currículo, seleção de conteúdos que o comporão, elaboração ideológica dos conhecimentos ali reunidos; mirando sempre no compromisso ético e humano, na sua materialização.
Por entender que o currículo é submetido às concepções de educação concebidas historicamente, Moreira (2007) destaca que a depender de fatores histórico, sociais, políticos, culturais e econômicos, o currículo pode ser compreendido tanto como conteúdo a ser trabalhado, como experiências de aprendizagens a serem vividas pelos educandos. Em vista dessas especificidades, Moreira (2007) considera que o currículo está para o coração da escola, pautando todo nosso fazer pedagógico. Seu maior e mais importante articulador é o educador que precisa se fazer presente desde a sua elaboração e discussão até sua materialização crítica e consciente na escola. A partir desse núcleo de pensamento, o autor evoca o importante deslocamento de foco, das relações entre currículo e conhecimento escolar para currículo e cultura, dada “preponderância da esfera cultural na organização de nossa vida social” (Moreira, 2007, p. 4). Demonstra com isso, o alcance das instituições de ensino e seus aparatos na medida em que também é uma organização social.
Moreira (2007) situa o conhecimento escolar como elemento central no currículo, por entender que a educação de qualidade se faz de conhecimento relevante para cada sujeito de modo a melhor conhecer e transformar seu próprio contexto. O define como “saberes [...] socialmente produzidos nos chamados “âmbitos de referência dos currículos” (Moreira, p. 4)”.
Por âmbitos de referência temos, segundo esse pesquisador, o mundo do trabalho, saúde, atividades desportivas, as pesquisas científicas, movimentos sociais e o próprio exercício da cidadania (Moreira, 2007). Tais conhecimentos são descontextualizados de seus contextos de origem e recontextualizados para serem inseridos no currículo formal. Entretanto, Moreira faz o alerta por enxergar o perigo que aí reside: nessa ruptura entre a atividade escolar e as atividades próprias do campo de referência, há a seleção dos conteúdos por um grupo restrito (geralmente um grupo de profissionais de educação imbuídos de ideologias e que não decidirão neutramente) que ao descontextualizarem totalmente o conhecimento, contribuem para a ruptura com o mundo social onde foram construídos e funcionam. Consequentemente, “não permitem que se evidencie como os saberes e as práticas envolvem, necessariamente, questões de identidade social, interesses, relações de poder e conflitos interpessoais” (Moreira, 2007, p. 8).
O processo descrito de descontextualização acaba por invisibilizar as tensões e conflitos surgidos ao longo da produção de conhecimentos, decorrentes da pluralidade cultural. Tensões essas que além de movimentar transformações, suscitam questionamentos críticos sobre o conteúdo que está posto como acabado (Moreira, 2007).
Segundo Santos (1996) não podemos negar o conflito como se já o fez no modelo hegemônico (conhecimento regulação pela ordem) dentro dos espaços pedagógicos, há que concebermos e darmos espaço ao multiculturalismo. Disseminar essa ideia de hermenêutica diatópica, que preconiza a incompletude das culturas e busca maximizar a consciência deste aspecto, poderia se constituir em alternativa para a democratização de práticas sociais, saberes e subjetividades, conforme podemos observar no trecho destacado:
A coexistência de leituras tão discrepantes da nossa condição cultural contemporânea mostra só por si a turbulência a que estão a ser sujeitos os mapas culturais que serviram de base aos sistemas educativos modernos. [...] a hibiridizaçao é sempre uma troca desigual de reprodução, sob outra forma, a existência de culturas dominantes e culturas dominadas, enquanto a cultura global não é mais que a globalização de certas características específicas da cultura eurocêntrica (Santos, 1996, p. 29).
Também, para Arroyo (2011) é necessário que se reconheça, nos processos educativos, essa relação de poder e que o espaço da educação precisa ser entendido nessa complexidade. Nessa relação de poder que, ilusoriamente, diz atender às necessidades e aos interesses do coletivo, inviabiliza-se aquilo que não é oficialmente reconhecido, em que o conhecimento do outro é popular, sem importância. Se esses conhecimentos são marginalizados, o currículo deixa de ser a expressão real de uma comunidade, de suas identidade e subjetividade, e passa a ser uma categoria abstrata, que atende aos ideais de uma parcela da sociedade. O foco agora é também na falta de reconhecimento dos sujeitos, reais, viventes. A luta atual não é mais só por escolarização e sim, também, por pertencimento social, movimento de afirmação que acontece na medida em que se valorizam conhecimentos vividos.
O educador que compreende além das dimensões citadas os modos pelo quais se dão a construção do conhecimento escolar possibilita uma “orientação cultural ao currículo” (p. 10), pois segundo Moreira (2007), no currículo reside tanto os manifestos de cultura como as disputas pelos significados que prevalecerão. Sobre a organicidade do conhecimento no currículo formal, retomamos em Freire o sentido essencial que a cultura ocupa aspecto tão suscitado por Moreira:
[...] a dialogicidade comece, não quando o educador-educando se encontra com os educando-educadores em uma situação pedagógica, mas antes, quando aquele se pergunta em torno do que vai dialogar com estes.[...] conteúdo do diálogo é a inquietação em torno do conteúdo programático da educação.[...] Para o educador – educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma doação ou imposição – um conjunto de informes a ser depositado nos educandos -, mas a devolução organizada, sistematizada e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada (Freire, 1983, p. 116 e 117).
No cotidiano de nossos discursos, pensamos o currículo apenas como compêndio de conhecimentos e a educação como algo que retirará brasileiros da subcidadania. Admitir a educação desta forma é negar o atual movimento dos coletivos que altera o lugar da escolarização. De acordo com Arroyo (2011), estamos falando de prática curricular com caráter político, síntese de saberes. É o conhecimento construído a partir do que somos, do que fazemos.
Dentre os princípios levantados por Moreira (2007) para construção de um currículo culturalmente orientado, alinhado ao dizer de Arroyo, encontramos o de “reescrever o conhecimento escolar” (p. 17) desvelando a história não contada, mas vivida. O confronto de diferentes enfoques e versões difundidas evidencia outras intenções, repressões, silenciamentos e exclusões não contadas oficialmente (Moreira, 2007). Ao considerarmos esse princípio de construção, abrimos caminhos alternativos para compreender realidades de violência, injustiça social, desrespeito, discriminações, tramas sutilmente ocultadas nas sociedades atuais.
A escola é chamada à desestabilização. Entremeada por culturas diversas e encarnadas na figura de seus educadores, não é aceitável que ela padronize abordagens, eternize encaminhamentos, e cristalize-se no tempo e espaço suas formas de atuar e pensar (Moreira, 2007).
Sacristán (2013) sublinha que a cultura é objeto de trabalho de toda ação e instituição educativa e o currículo é a ponte materializada entre a sociedade e as instituições educacionais. Assim sendo, o autor assinala que no currículo estão presentes as culturas dos sujeitos de um determinado contexto político, social, econômico que o constituíram como tal. Dado isso, reporta a nós o questionamento da legitimidade de quem escolhe o que escolhe e por que escolhe esse ou aquele conteúdo.
Não há neutralidade em seu texto dada que a sua construção toma por base as escolhas, os interesses de diferentes meios culturais culminando nas desigualdades sociais (Sacristán, 2013, p. 13). No entanto, paradoxalmente entre o texto acabado e a materialidade desvelada nas práticas educativas, acontecem inúmeras transformações do conteúdo cultural ali impresso. O autor nos
conduz a refletir que esse texto será interpretado na prática, gerando efeitos nos seus destinatários.
Nessa perspectiva processual, as concepções de educação precisam ser constantemente revisitadas, o que remonta de um modo geral à perspectiva crítica de educação. Tal como examina Apple (2011) carecemos de “compreensão mais robusta” dessa visão para “construção minuciosa daquilo que a educação é ou para que serve, o modo como deve ser executada, o que se deve ensinar e quem deve ser capacitado para envolver-se em tal processo”(p. 15). Essa compreensão consiste em admitir que “dinâmicas de dominação e exploração”, “estruturas de poder existentes” (Apple, p. 16) impõem à educação: a retomada crítica de pressupostos epistemológicos e ideológicos, segundo Apple.
O que se quer evidenciar são “as formas de poder na educação” (Apple, p. 21). A pressão exercida pelas lutas dos movimentos sociais recriam identidades, resgatam “os despossuídos” para uma atuação e participação mais democrática em suas comunidades, buscando alternativas frente às agendas neoliberais e conservadoras. Na escola, observa-se reprodução de relações sociais e culturais, mas também conflitos e a possibilidade de um fazer educativo mais politicizado, resultante da influência dos esforços dos movimentos sociais (Apple, 2011).
Observadas as proporções culturais constituintes do currículo, podemos compreender os caminhos que levam à inserção da EDH, enquanto eixo estruturante, em alguns currículos escolares. A análise de Magendzo (2006) com referência ao currículo e EDH circunda em torno de que ela influi também no clima organizacional. Portanto, não há que se falar de conteúdos curriculares de direitos humanos que sustentem explicitamente conceitos e ideias de respeito à dignidade, às liberdades, à formação ativa e cidadã, e manifestar práticas educativas autoritárias, imbuídas de pensamentos discriminatórios, rotinas que aniquilam a criatividade e excluem a participação (Magendzo, 2006, p.34).
As escolhas feitas, concernentes desde os conhecimentos até as ordenações de trabalho usadas, sem amparo democrático, reverberam drasticamente em sala de aula. Portanto, a participação do docente não se limita àquele espaço, lhe diz todo respeito o que acontece e é decidido em outras instâncias educacionais e políticas. Por isso, lembra Freire “[...] para que haja comunicação eficiente entre eles, é preciso que educador e político sejam capazes de conhecer as condições estruturais em que o pensar e a linguagem do povo, dialeticamente, se constituem” (Freire, 1983, p.121).
Magendzo (2006) expõe que a Educação em Direitos Humanos - EDH, uma vez incorporada ao currículo da educação formal, deve assumir caráter transversal numa perspectiva de formação cidadã, para vida e para o exercício democrático. Os conhecimentos formadores da EDH se constituem como saberes instrumentais, tanto na formação citada, como para ação e intervenção social. A EDH, ao perpassar o currículo, pode contribuir para emancipação dos sujeitos de direitos mirando a justiça social.
Zenaide (2008) diz, ao examinar o processo de construção e os subsídios de saberes e práticas educativas no campo dos direitos humanos, como a articulação entre saberes e experiências da educação formal e informal, estabelecidos com diálogo, têm dado conta da pluridimensionalidade da EDH. As relações sociais, tensões, ações culturais e políticas, e outras experiências educacionais vindas de fora dos muros da escola, aproximam a realidade emergida por meio dos seus sujeitos demonstrando a inviabilidade de se tratar disciplinarmente dessa modalidade de educação. Explicita, ainda, que o alcance da transversalidade nas práticas educativas pode ser observado na escolha de estratégias e metodologias apoiadas em direitos humanos. Dos métodos de aprendizagem que merecem destaque, apresenta aqueles que, centrados nos educandos, promova um ambiente de confiança para auto expressão dos indivíduos, de segurança, de respeito mútuo e de solidariedade.
A educação abarca também conteúdos como a história dos processos de luta e Violações, identidade de gênero, diversidade étnico–racial, diversidade religiosa, educação democrática, que por sua vez estão interconectados tanto com os diversos conteúdos curriculares quanto com o exercício prático deles (Silva, 2010B). Esses conhecimentos precisam ser apreendidos mirando o desenvolvimento de valores éticos. Dessa forma, a transversalidade da EDH não diz respeito somente à transversalidade curricular, perpassando, integrando e dialogando criticamente com conteúdos de áreas diversas. Essa transversalidade consiste em viver práticas pedagógicas democráticas, a abertura para inovação das práticas a fim de que acompanhem a modernização do ser humano, valorizar além das aprendizagens cognitivas as sociais e afetivas, fomentar aspectos culturais e artísticos.
Oferecer um currículo que contemple teoricamente a perspectiva crítica, comprometido transversalmente com temáticas que circundam na periferia do conhecimento como diversidade, sustentabilidade, cidadania e EDH, é um ponto. Outro ponto é atingir e envolver nesse processo um público que talvez não se reconheça no documento. Muitos discursos e estruturas podem estar repaginados, mas seu processo de construção uma vez não sedimentado em princípios democráticos e históricos podem perpetuar velhos ranços que favorecem dialeticamente poderes do Estado.
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[1] Alves (1994) pontua que apesar do caráter ocidental do documento, a declaração inspirou Constituições Nacionais quando tratou dos direitos e liberdades fundamentais. Reconheceu, dessa forma, que o relativismo cultural era uma ameaça quando justificava violações de direitos internacionalmente reconhecidas (Alves, 1994).
[2] grifo nosso.
[3] grifo nosso.
[4] grifo nosso.
[5] termo cunhado por Paulo Freire, em sua obra Pedagogia do Oprimido, 1975, para se referir aos educadores e educandos numa perspectiva de que ambos são sujeitos do processo em que se educam em comunhão mediatizados pelo mundo. (p. 79)